A questão da pirataria


A teologia moral divide esta questão em duas: a propriedade material e a propriedade imaterial. Lembre que isso foi definido há muito tempo, não se adaptou ainda para os novos tempos, mas vale a analogia.

Subtrair a propriedade material SEMPRE é pecado, pois é roubo/furto. Você tirou da mão daquele algo para vender para outrem, e deixou o dono original sem nada.

Já a pirataria (violação da propriedade imaterial) não tem essa mesma característica: você não está subtraindo do dono a posse do material original. Não é roubo. É lucro cessante. O sujeito deixa de ganhar, mas não perdeu. E, categoricamente, nem todo pirata lucra financeiramente com a pirataria (só o carinha que vende o CD no camelô), não dá pra generalizar.

Aí se entra em toda a teologia moral medieval discutindo a questão do lucro cessante, que está intimamente ligada à cobrança de juros, que são pecado mortal (os cristãos parecem que esqueceram isso, os judeus e os maometanos porém levam o mandamento à risca); quando é e quando não é possível exigir o lucro cessante.

Ainda tem um terceiro debate: o processo criativo das artes liberais (música, pintura, escrita) sempre foi considerado uma empreitada do artista, que faz do seu talento um investimento que pode ou não dar lucro - e nunca se pensou que o artista vivesse somente disso, até mesmo pouco tempo atrás, atores tinham profissões civis normais. Se tinha talento mas não tinha condições de bancar seu lançamento ao mercado (seu investimento), usava de um mecenas que tivesse interesse pela arte e dinheiro para bancá-la de livre e espontânea vontade. A arte nunca foi, no passado, considerada um meio de sustento por si só.

Ora, por analogia, software também é o produto artístico da mente e do estado-da-alma do programador, é um processo criativo inédito. Daí, se encaixaria nesta classe.

Por último: é uma situação que só começou a se desenvolver agora no final dos séculos XIX-XX.

Se é algo recente, que não existia antes (é novidade), então não pode fazer parte da Lei Natural. Se não é contrário à Lei Natural, então não é pecado.

E, para o último debate: a Igreja "pirateou" a Bíblia judaica, festas, efemérides, paramentos, vestimentas, títulos, e mais um sem número de coisas das culturas pagãs que foi incorporando ou das quais surgiram (da cultura judaica e da cultura romana). Ela então seria a pirata mais suja, criminosa e ladra da face da terra?

Para resumir a lógica escolástica por trás disso, recomendo ler o seguinte parágrafo do verbete Usura (da Wikipedia mesmo, e lá cita as referências):

Definição de lucro cessante é:

"Assim sendo, não há lucros cessantes, quando, efetivamente, não ocorreu paralisação de lucros, esperados pela pessoa, não se evidenciando, pois, prejuízos reais e efetivos. Lucros problemáticos não formam lucros cessantes, quando se aleguem obstáculos, impedimentos ou estorvos por outrem promovidos. Os lucros cessantes eram lucros certos, que deixaram de vir por fato estranho e não desejado." (Plácido e Silva)

Lucros vindos da venda de CDs (ou software) não são certos. Você não tem como quantificar com exatidão quantas e quais pessoas vão comprar os discos, e menos ainda ficar tentando adivinhar quais das pessoas que baixaram a música pirata, iriam comprar o disco original ao invés de cometer tal ato. É, em outras palavras, viver de contar com o ovo ainda no rabo da galinha. É uma aposta, um investimento calculado, mas não deixa de ser um mero investimento, onde se pode ganhar igualmente como perder, só as chances é que mudam em relação à corrida de cavalos ou à mega-sena; puramente estatístico.

No caso dos CDs, o trabalhador tem direito a sua justa paga (a equipe de estúdio, a copeira, a faxineira, etc). Mas isso, porque eles efetivamente prestaram um serviço material. Isso NUNCA deve estar ligado à condicionalidade do produto vender ou não.

Ser dono de um negócio, é lidar com o risco, pura e simplesmente. É apostar seu dinheiro/suas idéias/seu esforço e suor, e ver dar resultados - que podem ser positivos ou negativos. O empresário de artistas moderno é o mecenas d'antes, só o nome mudou.

Falando nisso, vocês compram CDs católicos, certo? Alguns da CODIMUC, suponho. A mesma gravadora - que tem sede ao lado da Canção Nova, ou sei lá, dentro do terreno da comunidade em Cachoeira Paulista - que distribui apenas 10-30% do lucro líquido (depende do contrato), sem disponibilizar transparência suficiente nos números e relatórios, e escravizando os artistas em turnês mega-cansativas e de agenda superlotada onde eles não ganham quase nada pelas apresentações (fora as obrigatórias que são gratuitas para a gravadora e parte da campanha de marketing e divulgação de uma nova obra). Digo isso por relatos: uma conhecida ficou enroscada no contrato deles sem ganhar quase nenhum tostão por isso, sentindo-se totalmente escravizada.

Quanto à Igreja ser a maior pirata do mundo: a maior parte de nossas cerimônias, paramentos e vestimentos foram herdados dos judeus, dos civis romanos, dos sacerdotes romanos, da cultura pagã. Nosso calendário transformou festas pagãs em cristãs (a do Sol Invictus, por exemplo, em festa de Natal de NSJC), os solstícios, herdou a páscoa dos judeus, pegou a Torá judaica e adicionou mais livros, e por aí vai...

O lucro (e o salário), classicamente falando, só é honesto e moral se for obtido mediante a aplicação de trabalho e esforço pessoal. Físico. Ganhar dinheiro com a especulação e com a cobrança de juros, ou seja, com o popô sentado na cadeira sem fazer nada, é e sempre foi imoral.

Sempre também foi classificada como ganância (e usura) essa história de você trabalhar de graça agora condicionando ter uma participação nos lucros posterior, se a sua intenção não é a de pura e unicamente apostar e jogar com a sorte e aceitar as conseqüências do ato, de poder ter ou não sucesso. Assim, se o músico não cobrou o salário pelo tempo em que desperdiçou gravando o CD para a gravadora (que é sua justa paga), contando apenas com o lucro vindo do CD - e normalmente o fazem, porque obviamente a projeção de lucro com a venda seria muito maior do que o custo da hora trabalhada do artista - então ele automaticamente está mudando o lado da moeda e também está empreendendo (junto ao dono da gravadora) e aceitando os louros e os fardos.

O artista ganha mesmo é com o show, e tem o direito de receber incondicionalmente por ele, uma vez que foi trabalho efetivamente realizado e não fruto de especulação. E o grosso da renda do artista vem (e deveria vir) do show mesmo, não da venda de discos, que nada mais é do que propaganda em larga escala do seu trabalho pessoal e físico, fruto do seu suor. É uma cópia daquilo que ele efetivamente produz ao vivo. No começo do século XX mal havia dispositivos para gravar áudio, as coisas tinham de ser feitas ao vivo.

Os abutres sempre estão voando em volta da carne fresca, esperando o momento certo para atacar. Ou sei lá qual analogia posso usar nesse caso.

O problema aí passa a ser algo que os tradicionalistas em geral têm denunciado há muito tempo (mas obviamente às vezes a mensagem vem tão carregada de chavões e ódio que não é entendida): ao se "abrir para o mundo" conforme solicitou o Concílio, a Igreja acabou por abrir as portas também para a podridão do mundo, incluindo os aproveitadores.

Quantas e quantas vezes mais você não vê claras ações de interesse puramente financeiro e nem um pouco religioso em alguns ditos "empreendimentos católicos"? Seja a indústria do turismo religioso, seja a indústria de "eventos", seja a venda de "água do Rio Jordão" (imitada pelos mais baixos escalões protestantes neopentecostais, em variados sabores), seja os novos "conglomerados de mídia" católicos (e seus grandes portais, etc) ou mesmo as micro-e-pequenas empresas de "criação de sites católicos" ou que exploram a Igreja como mais um "nicho de mercado"?

Já foi vistos casos de gente que se "converteu", virou liderança da RCC local e depois regional, mas ainda com mentalidade mundana, abriu a lôxinha para vender produtos para carismáticos em geral, e depois foi se aliando a políticos interesseiros para depois conseguir cargos em gabinete. Tudo porque era liderança local que depois foi aumentando o prestígio para liderança regional e acabou formando seu curralzinho.

Antigamente eram só os políticos puxando o saco do pároco em palanque na pracinha... Agora tem de tudo!

Rufianismo é um outro tipo de usura; é a obtenção de lucro sem trabalho, explorando o trabalho alheio mediante a ameaça de uso da força.

Volto ao argumento anterior: software é uma obra de arte análoga à música, pintura, literatura. É uma livre criação da mente do artista (programador) através da combinação de códigos (assim como a música é a combinação de letras e notas musicais, a literatura é a combinação de palavras, a pintura é a combinação específica de tintas) que ele pode ou não liberar para o público, ou ceder seu uso para alguém.

No exato mesmo exemplo da música, o programador pode fazer o software ele mesmo e lançar ou não ao público, ou ceder os direitos do software para o patrão (a exemplo do músico que cede os direitos para a gravadora) em troca de salário ou em troca de participação nos lucros. No caso do software, é mais convencional que programadores recebam salário e não participação nos lucros (ou os dois até), logo, a justa paga do trabalhador está exercida.

Quanto ao dono da empresa de software que contratou o programador, novamente insisto, é um investimento que ele faz mediante o lançamento no mercado de uma idéia, que pode colar e dar certo e vender horrores (ou mesmo criar um monopólio), ou não. Trata-se pura e simplesmente de lidar com o risco... Todo mundo que aposta, aposta com a intenção de vencer, mas não pode exigir algo se vir a perder, é da natureza da sorte e do azar.

Note: não estou defendendo a pirataria descarada, seja para uso pessoal ou para sobrevivência ao vender "comercialmente" como é o caso do camelô. Só se expõe que, mediante a tipicidade da coisa, ela não pode ser classificada como imoral e muito menos fere o direito natural (uma vez que nem sempre fez parte do mesmo, ou que a conduta anteriormente era tratada de maneira oposta), ou seja, não é pecado.