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A felicidade natural e sobrenatural


Se Cristo não tivesse nos salvado, como poderíamos ficar pela eternidade (pois temos alma imortal) satisfeitos com uma felicidade natural (um conhecimento natural de Deus, sem participar de sua Vida, por exemplo)? Isso não seria uma certa infelicidade?

Antes do pecado, o homem vivia um estado de felicidade natural. Não estava em graça, como estamos os que foram salvos do pecado. Por isso, o pecado original fez um bem, por mais que seja um mal: Deus, ao nos perdoar, em Cristo, não se contentou em restituir-nos à justiça original, mas nos deu algo a mais, a graça. Por isso, de um mal, Deus tirou um bem maior. Se não tivesse Adão pecado, estaríamos todos hoje em felicidade, claro, mas uma felicidade natural, uma "visão" de Deus natural. Pela graça, que só nos é dada com a morte de Cristo, temos capacidade de uma felicidade sobrenatural, de uma visão de Deus que é dita beatífica

O homem, em estado natural pós-pecado é capaz de um bem, sim, de um bem limitado. Achar que o homem após o pecado de Adão é capaz de um bem ilimitado é desconsiderar o pecado original. Achar, por sua vez, que ele é incapaz de qualquer bem é cair na heresia luterana.

E isso também não seria uma "infelicidade" para Deus, em seu desejo eterno e inefável de doar-Se aos homens?

Daí que a Encarnação ser algo necessário, pois “Reduzir a encarnação e o seu significado somente à soteriologia significa colocar a sabedoria de Deus dentro dos limites do tempo. A encarnação seria alguma coisa que se acrescenta temporalmente ao desígnio de Deus, já prefixado desde a eternidade. Se eéalgo que se acrescenta a esse desígnio, é porque este é carente, insuficiente. A encarnação seria, de fato, um anexo, um remendo que a evolução da história humana - a qual, na verdade a partir de um momento temporalmente definido, traz em si o pecado, o distanciamento de Deus – se impõe à sabedoria de Deus. A encarnação seria, portanto, determinada unicamente pela queda, pelo pecado, pelo mal. Na Bíblia se lê, pelo contrario, que “Cristo é o Primogênito de toda criatura” e, na tradição dos padres, num ditado de São Metódio de Olimpo, “O Verbo desceu em Adão ates dos séculos”.” (KOUBETCH, Dom Volodemer, Da Criação à Parusia: Paulinas, 2004, 29p)

Sobre a Encarnação enquanto plenificadora:

“O aspecto cristológico da cosmologia dos Padres desenvolvia a realidade de Cristo como logos-Palavra, a lei universal de todas as criaturas desde o inicio. Enfim, o Pai lhe deu todo o poder e domínio sobe as criaturas. A união antropocósmica se verifica quando Deus está em todos e em tudo (1Cor 15, 28). Na encarnação, Deus completa sua criação e com ela a justifica; porque, sem essa implicação divina, a criatura é inevitavelmente imperfeita. Deus não poderia abandonar o mundo, o qual ainda que pefeito na ordem de sua criação (“muito bom” Gb1,31), tem em sim mesmo a inevitável imperfeição ontológica do criado que daí decorre; em Cristo ressuscitado e vitorioso, o universo se encaminha para a sua plenitude, na perspectiva plena da criação; plena,. porque a criação tinha em visto a encarnação.” (Idem, 29p)

A Encarnação aconteceria com ou sem o pecado original. É uma hipótese teológica, entretanto, e não um dogma. Alguns santos, sobretudo os orientais, mas também Santo Tomás de Aquino, falam da Encarnação ainda que sem o pecado de Adão. Tal Encarnação, faria o homem participar da natureza divina de modo mais perfeito.

Assim, nessa hipótese, o homem, em estado de justiça original, sem o pecado, teria uma felicidade natural. Pecando e sendo salvo, poderia viver uma felicidade sobrenatural. Mas mesmo que não tivesse pecado, Cristo iria se encarnar, e, a partir daí, o homem não seria perdado (pois não haveria o que perdoar), porém seria elevado. Com o pecado, a Encarnação é a porta para nos perdoar E elevar. Sem o pecado, apenas nos elevaria.

Uma citação um tanto longa de Cornélio Fabro em seu "Introdução a São Tomás" de uma transcrição de uma artigo intitulado "Cornélio Fabro e a metafísica Tomista no século XX", de Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira (que é do RJ), in "Coletânea - 2000 anos de Jesus Cristo - Tomo III".

"XLVI - A existência das coisas materiais, ou seja, o durar no tempo, depende da duração e do modo de durar da união do sínolo de matéria e forma; e assim vale para o homem mesmo na sua existência corpórea. Como espírito, a alma humana é incorruptível: de fato o ser, o modo de ser, é revelado pelo agir, isto é, pelo modo de agir. Ora, a alma conhece o verdadeiro em si e tende ao bem em si, perfeito e sem limites: daí a sede insaciável de saber e felicidade. Assim, a alma no conhecer e no querer atinge o absoluto e não depende do corpo, nem pára nas realidades materiais, e sim aspira à ciência e ao conhecimento perfeito e à felicidade última. Esta emergência ou independência no agir revela a independência no ser, de modo que o esse (actus essendi) não pertence ao composto, mas propriamente à alma intelectiva como forma em si subsistente (a alma subsiste no próprio esse, que é comunicado ao corpo e que o retoma para si quando o corpo, com a morte, cessa de existir). À forma espiritual o esse (como actus essendi) adere imediatamente e por isso incindivelmente: assim a alma humana é imortal."

A felicidade natural estaria em agir de acordo com a natureza, conhecendo e querendo. E, quando liberto da corporeidade (da carne), e, portanto, de suas limitações que lhe são próprias atingiria (beatitude)o grau "natural màximo" desse conhecimento e desse querer.

Tal grau de conhecimento e amor é de ordem e natureza distinta da participação na vida divina que nos é dada pela participação na filiação divina. (E aí somos remetidos ao "felix culpa").

Para ilustrar parte de um artigo bastante acessível de Luis Jean Lauand, chamado "Religião e valores humanos: a proposta do catolicismo" que ilustra bem isso (http://www.hottopos.com/mirand15/jeanlaua.htm).

O artigo comenta uma série de artigos do Catecismo da Igreja Católica à luz da filosofia tomista. Seria interessante começar pelo conceito de participação que, apesar de saber que é de seu domínio, trago à guisa de uniformizar conceitos:

"Essa doutrina encontra-se no núcleo mais profundo do pensamento do Aquinate e é a base tanto de sua concepção do ser como - no plano estritamente teológico - da graça. Indicaremos resumidamente suas linhas principais.

Como sempre, voltemo-nos para a linguagem. Comecemos reparando no fato de que na linguagem comum, "participar" significa - e deriva de - "tomar parte" (partem capere). Ora, há diversos sentidos e modos desse "tomar parte"


. Um primeiro é o de "participar" de modo quantitativo, caso em que o todo "participado" é materialmente subdividido e deixa de existir: se quatro pessoas participam de uma pizza, ela se desfaz no momento em que cada um toma a sua parte.

Num segundo sentido, "participar" indica "ter em comum" algo imaterial, uma realidade que não se desfaz nem se altera quando participada; é assim que se "participa" a mudança de endereço "a amigos e clientes", ou ainda que se "dá parte à polícia".

O terceiro sentido, mais profundo e decisivo, é o que é expresso pela palavra grega metékhein, que indica um "ter com", um "co-ter", ou simplesmente um "ter" em oposição a "ser"; um "ter" pela dependência (participação) com outro que "é". Tomás, ao tratar da Criação, utiliza este conceito: a criatura tem o ser, por participar do ser de Deus, que é ser. E a graça nada mais é do que ter - por participação na filiação divina que é em Cristo - a vida divina que é na Santíssima Trindade.

Há - como indica Weisheipl - três argumentos subjacentes à doutrina da participação: 1) Sempre que há algo comum a duas ou mais coisas, deve haver uma causa comum. 2) Sempre que algum atributo é compartilhado por muitas coisas segundo diferentes graus de participação, ele pertence propriamente àquela que o tem de modo mais perfeito. 3) Tudo que é compartilhado "procedente de outro" reduz-se causalmente àquele que é "per se".

No pensamento de Tomás, tanto o ato de ser da criatura como a graça são casos de participação. Na criação, Deus que é o ato puro de ser, dá, em participação o ser às criaturas, que têm o ato de ser. Essa primazia do ser exclui todo "essencialismo" de Tomás, que é, no dizer de Maritain "o mais existencialista de todos os filósofos".

# 108 (do CIC) (...) Todavia a fé cristã não é uma "Religião de Livro". O cristianismo é a religião da "Palavra", não de um verbo escrito e mudo, mas do Verbo encarnado e vivo"(S. Bernardo).

O conceito fundamental é, portanto, o de graça: uma palavra "técnica" que toca as profundidades da teologia. Graça, no sentido religioso, não por acaso é a mesma palavra que se usa em expressões como "de graça", "gratuito" etc.: a graça é o dom por excelência. Para entendermos isto, detenhamo-nos um pouco numa comparação entre a criação (onde Deus nos dá em participação o ser) e a graça (onde Deus nos dá em participação sua própria vida íntima). Graça e criação: ambos são dom, favor e amor gratuito de Deus; mas a criação é, como diz S. Tomás, o amor comunnis (o amor geral) de Deus às coisas: o amor com que Deus ama as plantas, a formiga, a estrela; entes que são por um ato de Amor e de Volição divina. Mas, além desse "amor comum", há ainda (formulação também de Tomás) um amor specialis, pelo qual Deus eleva o homem a uma vida acima das condições de sua natureza (vida sobre-natural) e o introduz numa nova dimensão do viver.

A graça, que recebemos no Batismo, é uma realidade nova, uma vida nova, uma luz nova, uma qualidade nova que capacita nossa alma a acolher dignamente, para nela habitarem, as três pessoas divinas. Este amor absoluto (S. Tomás) é uma participação na vida íntima de Deus; a alma passa assim a ter uma vida nova: nela habita (ou para usar o termo teológico: inhabita - inhabitatio, habitação imediata, sem intermediários) a Trindade. Assim, quando se trata de definir a graça, Tomás vale-se das mesmas comparações de participação no ser. Não se trata de um panteísmo porque é participação (Hbr 3, 14; 2Pe 1, 4): ter por oposição a ser. Cristo é o Filho de Deus; nós temos a filiação divina. A Filiação do Verbo (que traz consigo toda a vida íntima da Trindade) nos é dada em participação por Cristo, pelo Batismo.

Daí que ser católico não se restrinja a cerimônias, a práticas ou a cumprir regras de conduta; mas sim a alimentar um processo de identificação com Cristo, por assim dizer, 24 horas por dia. Assim, quando o Catecismo da Igreja Católica declara o Batismo o sacramento da iniciação cristã por excelência está afirmando algo de muito distinto do que um mero "entrar no clube" ou "tirar a carteirinha" de cristão...

Sem o pecado, participaríamos em um sentido. Após o pecado, estando em graça, participamos em outro. Ambas as participações são modos da graça, mas a primeira é mais uma graça atual, e a segunda a graça habitual, santificante.

A comparação certamente tem limitações imensas, mas será que não daria para dizer que a natureza humana recebeu um imenso (incomensurável) "upgrade"

O nosso "hardware" agora "roda" "softwares" de outra ordem e magnitude.

É interessante observar que alguns Padres, principalmente orientais, dizem que esse upgrade se daria mesmo sem o pecado, por ocasião da Encarnação, que haveria também sem o pecado.

Não podemos pensar na Encarnação como necessária. Mesmo que se desse sem o pecado, nunca poderia ter sido necessária. Dizer q uma ação divina é necessária é limitar o poder de Deus. Ela faz as coisas porque quer, não porque necessita.

Morrer na Cruz não faria Cristo. Apenas a Encarnação. Até porque os Padres que defendem a Encarnação ainda sem o pecado, nunca mencionam a Paixão. A própria Encarnação nos elevaria, nos daria a graça da participação em Deus no sentido estrito.

Podemos elaborar um "roteiro":

1) Antes do pecado, em Adão, tínhamos uma felicidade natural, mas, com uma certa participação em Deus por uma graça.

2) Deus nos levaria, no tempo por Ele determinado (plenitude dos tempos??), a uma felicidade sobrenatural, com uma mais plena participação n'Ele, pela graça.

3) Essa participação plena seria obra da Encarnação.

4) Como o homem pecou, Deus não só se Encarnou como morreu na Cruz por nós. A participação divina, então, após o pecado, é fruto da Encarnação e da Paixão, não só da primeira.

Restam, entretanto, duas dúvidas:

a) a graça da primeira participação é santificante ou atual? Inclino-me para segunda opção.

b) certo que seríamos elevados, com ou sem o pecado, a uma maior participação em Deus; todavia, a participação a que somos convidados após o pecado é maior do que a que teríamos se Adão não tivesse pecado? Noutros termos, se Adão não tivesse pecado, a Encarnação do Verbo o faria passar da felicidade natural à beatitude sobrenatural; essa beatitude natural, se não houvesse o pecado, é menor ou menos plena do que aquela que podemos experimentar hoje porque Adão pecou? Penso que sim, pois o mérito da Paixão do Verbo parece-me maior do que a simples Encarnação, e porque assim salvamos a doutrina do "felix culpa".

Alguns teólogos falam que que Jesus "sem o nosso pecado" viria uma única vez em sua Glória. Mas essa vinda de Cristo em glória seria diferente da que esperamos agora, pois só virá em corpo porque já se encarnou, já assumiu nossa natureza. Sem o pecado, tal vinda de Cristo em glória deveria ser simultaneamente com a Encarnação. Só não sabemos como equacionar isso.

No CIC fala da importância da Ressurreição da qual é o culminar da Encarnação, poderíamos fazer uma aluzão contrária para termos uma idéia de como seria tal "1ª e única vinda de Cristo" pois no CIC fala de uma conseqüência tanto de Deus quanto do homem. Mas a Ressurreição pressupõe a Paixão. Ora, sem o pecado, Cristo não teria morrido por nós, apenas se encarnado. Portanto, não ressuscitaria. Talvez sua única vinda fosse encarnando-se no seio da Virgem Maria, e, em seguida, em dado momento de sua vida, manifestando-se gloriosamente. A Transfiguração me ocorre agora como exemplo.

Numa possível Encarnação sem o ter havido o pecado, não podemos cogitar a hipótese de Cristo estar em glória por causa da Ressurreição, uma vez que para ressuscitar deveria morrer, e Ele morreu por causa de nossos pecados. Ora, sem o pecado, haveria Encarnação, mas não Paixão e, por conseguinte, também não Ressurreição.

Falamos em Transfiguração apenas como exemplo de como estaria o corpo glorioso de Cristo nessa hipótese de Encarnação. Glorioso, sim, mas não em função de uma Ressurreição inexistente.

Cabe, também, a conceituação do adjetivo "preternatural" em oposição a sobrenatural e natural. Natural é o que pertence à natureza. Sobrenatural o que está além da natureza e a pode mudar. Preternatural o que é anterior à natureza - superior a ela em um certo sentido. O sobrenatural é, em certo sentido, incriado, e o preternatural, embora não pertença à natureza, é criado. Por isso, só Deus é capaz de ações sobrenaturais. O povo, ao falar de fenômenos espirituais (seja dos típicos do kardecismo, ou da parapsicologia, ou mesmo possessões), tende a chamar tudo de "sobrenatural". Está errado. Só Deus age sobrenaturalmente, pois só Ele age acima da natureza de modo a mesmo contrariá-la. Os demais fenômenos que não são naturais, mas, por outro lado, não contrariam a natureza, são os preternaturais: e podem ser praticados, logo, pelos seres que, sendo anteriores à nossa natureza, a ela não contrariam mas a superam (os anjos, os demônios).

"A cruz é REVELAÇÃO. Ela não revela uma coisa qualquer, ela revela Deus e o ser humano. Ela desvenda quem é Deus e como é o ser humano. Na filosofia grega encontramos um estranho pressentimento desse nexo: a imagem do justo crucificado, de que fala Platão. Em sua obra sobre a República, o filósofo pergunta quais deveriam ser as características de um homem totalmente justo neste mundo. E ele chega à conclusão de que a justiça de um homem só é perfeita e comprovada quando aceita as aparências da injustiça, porque só assim ficaria provado que ele não se importa com a opinião dos outros, mas apenas com a justiça pela justiça. Por isso, segundo Platão, o verdadeiro justo deve ser incompreendido e perseguido, e o pensador grego não se peja de escrever: " Eles dirão que o justo, tal como o representei, será açoitado, torturado, acorrentado, terá os olhos queimados, e que, finalmente, tendo sofrido todos os males será crucificado...". Esse texto, escrito 400 anos antes de Crist, há de comover profundamente qualquer cristão. A sociedade do pensamento filosófico foi capaz de pressentir que, newte mundo, o justo perfeito será o justo crucificado; num vislumbre, intui-se algo daquela revelação do ser humano que acontece na Cruz.

"O fato de o justo perfeito, quando apareceu na Terra, ter sido crucificado, entregue à morte pela justiça, revela implacavelmente a verdadeira natureza do ser humano: assim és tu, homem, que não suportas o justo - aquele que simplesmente ama é visto como um tolo, é maltratado e expulso. Assim és tu, porque, sendo tu mesmo injusto, precisas da injustiça do outro, para que te possas sentir desculpado; por isso dispensas o justo que parece roubar-lhe essa desculpa. É assim que tu és. João condensou tudo isso na expressão "Ecce homo" (Eis o homem!), usada por Pilatos, querendo dizer, com outras palavras: essa a situação do ser humano. Assim é o homem. A verdade do ser humano é a sua falta de verdade. O salmo já diz que todo o ser humano é um mentiroso (Sl 116 [115], 11) que se opõe de alguma maneira à verdade. Assim descobrimos qual é a situação real do ser humano. A verdade do homem está na sua insistência em querer derrubar a verdade. O crucificado oferece ao ser humano o espelho em que este pode olhar-se sem retoques. Mas a cruz não revela apenas quem é o ser humano, ela revela também Deus: Deus é assim, ele se identifica com o ser humano até nas profundezas de seu abismo, e ele o julga salvando-o. No abismo do fracasso humano revela-se o centro da revelação, de uma revelação que não desvenda enunciados até então desconhecidos e sim a nós mesmos, porque nos revela diante de Deus revelando Deus em nosso meio."

"INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO", Joseph Ratzinger

Sobre a felix culpa, do mesmo livro:

"Evdokimov refuta o tom excessivamente determinista da encarnação, tematizado nafelix culpa. Para ele, a falta de apófase deforma e aprisiona o mistério, levando a uma acentuação exagerada da felix culpa como causa instrumental. Diz ele "A liberdade vitoriosa aparece agora nas suas conseqüências mais miseráveis da liberdade falida, porque sem a culpa não haveria a encarnação. A encarnação vem, assim, a ser reduzida a um meio técnico de salvação." (Idem, 31p)

Parece que há uma incompreensão da felix culpa, ou não?

A qualificação a Encarnação como "necessária" não no sentido de que Deus "precise" dela para suprir alguma insuficiência - inexistente, claro -, mas no de que decorre de sua natureza, Ele é obrigado - por si mesmo - a tal.

O Papa Bento XVI usou uma imagem parecida com a sua do upgrade, mas quanto à Ressurreição: ela seria um salto, uma evolução no homem impossível de ser por ele realizada.

Quanto à citação do Ratzinger, parece que a cruz é o símbolo máximo da Encarnação, não substancialmente, mas de modo acidental, já que o que mais nos abala não é a tamanha humilhação da "kenosis", do esvaziamento, do tornar-se homem, mas a grande, porém inferior, humilhação da cruz.

Se Ele é obrigado a algo, está limitado por essa obrigação, e, pois, sua onipotência fica prejudicada. Deus não pode ser obrigado a nada. Tudo em Deus é liberdade. Em Deus não há potência, pois é ato puro.

Não podemos confundir o impossível com o absurdo. O absurdo é aquilo que nem Deus faz por ser, justamente, absurdo. Um círculo quadrado, por exemplo. Se é quadrado, não pode ser círculo. Se é círculo não pode ser quadrado. Nesse sentido, há uma certa "limitação".

Entretanto, Deus não pode ser limitado pela necessidade. As necessidades são exteriores, extrínsecas a Deus. Aliás, essa posição de que Deus é movido pela necessidade é uma idéia herética.  Deus não se encarnaria porque era preciso, mas porque queria. Deus faz as coisas por sua vontade, não por ser condionado a isso (e fazer algo pela necessidade é ser condicionado a essa necessidade).

Mas a graça santificante não é justamente a da adoção filial? Se assim for, temos duas hipóteses:

a) a graça primeira, antes da queda, era santificante e, portanto, a mesma pela qual fomos elevados em Cristo (depois do pecado, pela Encarnação e Paixão; ou, se não Adão não houvesse pecado, apenas pelo "upgrade" conseguido a partir da Encarnação);

b) a graça primeira era atual, mas não santificante.

A segunda opção é a melhor. Afinal, se as graças eram ambas santificantes (e, portanto, iguais), não haveria o "upgrade", apenas uma cura e retorno à justiça original em Cristo por causa do pecado e, na hipótese de Adão não ter pecado, a Encarnação não faria sentido (dado que se fosse apenas para nos curar e não elevar, pq Ele iria se encarnar?).

Tudo passa, vemos, pela compreensão do conceito de graça santificante. Necessariamente, a graça santificante é a graça da adoção filial, ou pode haver graça santificante sem adoção filial?

A qualidade da graça com a qual fomos criados, a natureza da graça anterior ao pecado.

Talvez haja uma gradação na graça santificante, pois em Adão o relacionamento com Deus era um hábito - o que afastaria a tese de que a graça com a qual foi criado era atual.

Organizando as idéias...

1. Antes da queda, Adão e Eva tinham a graça santificante, i.e., a amizade com Deus. Quando o Verbo se encarnasse, haveria o que o Wagner muito bem chamou de "upgrade" nessa graça, ou, no dizer dos escolásticos, um aumento da graça santificante. Portanto, se não houvesse o pecado original, ainda assim haveria Encarnação. Não para conferir a graça santificante, porque o homem já a teria, mas para um acréscimo dessa graça (resta saber se é um acréscimo acidental ou essencial... a considerar essencial, estaríamos falando de uma outra espécie de graça santificante, o que não sei se sustenta).

2. Pecando, o homem perdeu a graça santificante. Então, em vez de mera Encarnação, o Verbo deveria encarnar-se, morrer e ressuscitar. E em vez de somente dar um acréscimo na graça santificante, era preciso curar o pecado, i.e., conferir a graça santificante perdida. A graça, sem o pecado, seria aumentada. Com o pecado, o aumento da graça (o upgrade) é concomitante com a própria recuperação dessa graça pelos méritos de Cristo.

3. Os justos do AT tinham a graça santificante em vista dos méritos de Cristo. Se não houvesse o pecado, essa graça seria a mesma de Adão e Eva, i.e., sem o upgrade. Como houve o pecado, o homem perdeu a graça, de modo que falar em justos, antes de Cristo, em graça santificante, importa em reconhecer que eles gozavam não só da graça mesma de Adão e Eva, mas da graça com o upgrade, de modo antecipado.

4. Essa graça plena se dava em vista dos méritos de Cristo. Mas não penso que, após a morte, ela devesse se converter em glória antes da morte. A atemporalidade da dimensão celestial não pode nos autorizar a pensar de modo que justifique a presença dos justos do AT antes da causa da salvação, que foi a Paixão. Soa-se um tanto estranha...

Não há dúvida de que Adão e Eva tinham a graça santificante, mas que o que vem depois supera. Vejam o que diz o Catecismo:

374.O primeiro homem não só foi criado bom, mas também foi constituído em uma amizade com seu Criador e em tal harmonia consigo mesmo e com a criação que o rodeava que só serão superadas pela glória da nova criação em Cristo.

375. Interpretando de maneira autêntica o simbolismo da linguagem bíblica à luz do Novo Testamento e da Tradição, a Igreja ensina que nossos primeiros pais, Adão e Eva, foram constituídos em um estado "de santidade e de justiça original". Esta graça da santidade original era uma participação da vida divina.

376. Pela irradiação desta graça, todas as dimensões da vida do homem eram fortalecidas. Enquanto permanecesse na intimidade divina, o homem não devia nem morrer nem sofrer. A harmonia interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher e, finalmente, a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação constituíam o estado denominado "justiça original".

O que vem depois, com Cristo? A própria habitação do Espírito Santo [ou também podemos falar da Trindade] na alma. Os teólogos que estudam atualmente esta questão criticam um pouco a visão da graça como uma "coisa", e uma "tipificação" de graças, como se fossem diversas graças diferentes. Não se trata disso, mas de modos de entendermos a ação da graça. Essa visão mais dificulta do que facilita para tentar entender a diferença [se é que há] entre a situação antes do pecado original, antes e depois de Cristo. Apesar disso, tendo a concordar com ela.

Na verdade, foi essa situação foi trabalhada em uma hipótese, porque não sabemos com certeza se pode ser descartada. Parece que a situação geral da humanidade, sem os sacramentos e sem a doutrina de Cristo, era claramente pior. Entretanto, há "justos" no Antigo Testamento que apresentam uma enorme união com Deus. Certamente é tudo fruto da Redenção, e não sei até que ponto pode ir o seu efeito "retroativo", para dizer de alguma forma.

É verdade que o Espírito Santo vem, de um modo certamente especial, em Pentecostes, e vem "para ficar", para dizer de algum modo. Mas também é verdade que foi Ele que falou pelos profetas. Trata-se, aí, mais de um carisma do que da graça santificante... Mas ambos costumam estar muito unidos nos planos de Deus.

As palavras que se usam também são diferentes, no Antigo e no Novo Testamento, para falar da aliança e da união com Deus.

"A redençao é a obra mais maravilhosa, a obra prima de Deus que refaz o homem desfigurado pela culpa e o repõe, em certo sentido, num estado melhor que o anterior á queda, a tal ponto que a Igreja não receia, assumindo as palavras de santo Agostinho, bendizer a culpa que nos valeu um Redentor tão sublime como Jesus.

De fato, não contente em reparar, pela sua satisfação, a ofensa feita a Deus e de restaurar nossa amizade, reconciliando com Ele, Jesus merece, ainda para todos nós, todas as graças que tínhamos perdido pelo pecado, acrescentando outras ainda, de forma que o nosso estado hoje, em Cristo Jesus é muitíssimo superior ao estado de Adão no paraíso" Dom Cipriano Chagas, Monge Beneditino.

Do Catecismo de São Pio X

57 - Além da inocência e da Graça Santificante, concedeu Deus aos nossos pais outros dons?

Além da inocência e da Graça Santificante, Deus concedeu aos nossos primeiros pais outros dons, que eles deviam transmitir, juntamente com a Graça Santificante, aos seus descendentes, e eram: a integridade, isto é, a perfeita sujeição dos sentidos à razão; a imortalidade; a imunidade de todas as dores e misérias; e a ciência proporcionada a seu estado.

Há alguns pontos bem estabelecidos na doutrina católica:

1. A graça é sempre um dom, totalmente gratuito.

2. Deus quis que algum modo o "merecêssemos" livremente. Mas esse merecimento não nos tira da total dependência de Deus para qualquer ação sobrenatural.

Quanto a Adão e Eva:

Temos, de algum modo, 3 "estágios":

1. Anterior à prova, no qual tinham a graça santificante.

2. Se tivessem "passado" pela prova - não passaram, pecando - teriam tido um incremento na sua relação com Deus, que corresponde à adoção filial.

3. Depois de um tempo nessa situação, sem passar pelo transe da morte, teriam a visão beatífica no Céu [como ocorreu a Nossa Senhora, se optarmos pela "dormição" antes da Assunção.

Antes de entrar no alter Christus, ipse Christus (o cristão é outro Cristo, o próprio Cristo), umas considerações.

A revelação principal sobre a doutrina da graça e da salvação, pelo menos a que foi, logicamente, mais estudada pela Teologia, diz respeito à nossa situação: batizados católicos. Cristo nos redimiu e deixou-nos os sacramentos. Este é o caminho mais direto para Deus, o que Ele deseja que chegue a muitos homens. Assim procuramos viver e para isso evangelizamos.

Mesmo neste caso, ainda há alguns pontos sobre os quais não há definição do Magistério, havendo mais de uma posição teológica. É o caso da relação entre graça e liberdade.

Não há qualquer dúvida de que, depois de Cristo, os sacramentos são o canal ordinário da graça. Mas não está dito, em lugar nenhum, que sem eles a graça não existe. Ao contrário. Mais recentemente, a Teologia começou a ir mais fundo em outras situações. Visualizamos ao menos quatro, que mais ou menos já apareceram neste artigo:

1. O povo eleito, antes de Cristo.

2. As crianças que morrem sem Batismo.

3. Os cristãos não católicos.

4. Os pagãos ou pessoas de outras religiões.

Nos grupos 1, 2 e 4, a graça pode existir sem os sacramentos. Em que casos? Como? Há inúmeras questões a serem analisadas aqui.

No grupo 3, a graça pode existir sem a plenitude dos sacramentos.

Se a Encarnação não era necessária para a elevação do homem à filiação divina , ao "alter Christus, ipse Christus" porque o seria para a Redenção?

Quando tratamos de ações divinas, não podemos falar em necessidade, mas apenas em conveniência. Esse é um dos motivos pelos quais não é muito bom fazer hipóteses sobre coisas que não aconteceram, na história da salvação, nem estão sinalizadas na revelação.

Ao fazer essas hipóteses [por exemplo se Cristo teria se encarnado ou não se não houvesse pecado] estamos tratando a Encarnação como se fosse uma necessidade, e não um ato livre de Deus. Ora, se não temos como predizer atos livres dos homens, quem diria predizer atos livres de Deus!

Resumindo: Cristo precisava encarnar para nos redimir? Não. Deus é onipotente e pode fazer qualquer coisa do modo como bem entenda. E fez, na verdade, de um modo que jamais imaginaríamos, encarnando e morrendo na Cruz.

Mas o que não imaginaríamos ocorreu de fato, portanto resta a nós tentar entender as razões de Deus, que certamente, se o fez, foi porque era conveniente. E o que os teólogos explicam é que, se foi um homem que pecou, era conveniente que um homem pagasse pelo pecado. Mas homem nenhum seria capaz de fazer isso, a menos que também fosse Deus. Por isso a conveniência de que Deus se fizesse Homem.

É nesse sentido que a Encarnação não foi necessária. Aliás, nem a criação nem qualquer outro ato de Deus. Considerar que Deus fez algo por ser necessário é tolher a liberdade daquele que é livre por antonomásia.

Um texto, excelente por sua simplicidade e clareza, de Jean L. Lauand sobre o conceito de graça em S. Tomás de Aquino. O nome do artigo, do qual trago apenas parte, é "Sentenças de Tomás de Aquino - Ordo, Natura, Gratia".

"No plano natural, todas as criaturas, quer materiais, quer racionais, participam do ser e, portanto, da natureza divina; toda a criação, e o homem especialmente, por sua perfeição própria, reflete no seu ser a Bondade, a Verdade, a Beleza de Deus. No plano sobrenatural, porém, ocorre uma participação da natureza divina como divindade, uma participação de Deus enquanto Deus, um tornarmo-nos Deus; passamos a ser divinae naturae consortes, como diz São Pedro (2 Pe 1, 4), participantes da própria vida íntima de Deus. E isto, diz Tomás, é a graça.

A participação sobrenatural atinge por inteiro o ser humano, de tal forma que se pode falar de uma "nova geração" ou "re-criação" (I-II, 110, 4); torna o cristão "filho de Deus" de uma maneira totalmente nova: o cristão participa da Filiação do Verbo - Cristo é Filho de Deus, e o cristão, que participa de Cristo, tem a filiação divina. Esta filiação divina distingue-se absolutamente daquela pela qual todos os homens são filhos de Deus, porque participam, ao existirem, do ser de Deus. Também neste ponto Tomás se aproxima muito mais dos Evangelhos do que inúmeros comentaristas anteriores: Cristo nunca põe a sua Filiação divina (natural) no mesmo plano da nossa (participada); assim, nunca diz, referindo-se a si mesmo e aos outros, "nosso Pai", mas sempre "meu Pai" ou "vosso Pai", ou "meu Pai e vosso Pai"
(cfr. por exemplo Jo 20, 17).

Tomás insiste nesse participar de Deus: "A graça é uma certa semelhança com Deus de que o homem participa" (III, 2, 10 ad 1); "O primeiro efeito da graça é conferir um ser de alguma forma divino" (III, 2 d. 26, 155); "Pela graça santificante, toda a Trindade passa a morar na alma" (I, 43, 5).

A teologia agostiniana, na medida em que tinha em pouco a realidade material e objetiva do mundo, tendia a considerar a graça não como uma realidade, um fato objetivo, mas como uma simples benevolência divina - um "cair nas graças de Deus" - que, no homem, não corresponderia a nada de real. Tomás, pelo contrário, mesmo afirmando que o mundo é mundo; o corpo, corpo; o homem, homem; lembra que estas são realidades distintas de Deus, e que a graça não destrói nem altera essencialmente nenhuma delas, permite-nos compreender que elas são, na íntegra e completamente, assumidas por Deus e elevadas a uma realidade superior.

A graça nos foi dada pelo Verbo, que se fez carne e morreu por nós sem que o merecêssemos. A doutrina da participação sobrenatural nada mais é que a formulação teológica do que sabemos pela fé: que Cristo é a videira, nós os ramos (Jo 15, 5), ou que Ele é primogênito entre muitos irmãos (Rom 8, 29), Pontífice e Mediador, etc. E se essa vida de Cristo se estende, pelo Batismo, a todos os cristãos, estende-se também de algum modo ao mundo todo: Por Ele aprouve ao Pai reconciliar todas as coisas consigo (Col 1, 20); tudo atrairei a Mim (Jo 12, 32).

 

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