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A questão da pirataria - parte II

A primeira parte do artigo você pode ver aqui.

Indaga-se sobre a possibilidade de estarmos amenizando um erro só porque se tornou tão comum. 

Parece-me que comprar diretamente de fontes piratas seja moralmente ilícito, mas não pelo ato em si, mas sim por todo o contexto envolvido (a questão dos direitos autorais, do direito de propriedade e do direito da empresa de lucrar com aquele produto). Esta é uma lei positiva que me parece perfeitamente amparada pela Justiça. Logo, em princípio, não apenas não há motivos para irmos contra essa lei, mas temos mesmo certa obrigação moral em aceitá-la e segui-la.

Quanto ao direito de eventualmente violar tal lei, acho difícil se posicionar se existe exceção ou não em termos de pecado. Penso que nunca é a melhor solução e, se tivermos que fazer, que o façamos com essa consciência e profundo desconforto. Se isso basta para anular a culpabilidade moral, sinceramente não sei dizer. Porque, embora a intenção não seja alimentar o mercado pirata, o meio utilizado é diretamente esse, não mera consequência acidental. Um fim mau não justifica um meio bom, assim como um meio mau não justifica um fim bom.


A questão é que o meio é dado pela lei constitucional e não natural. Pode-se questionar se o meio é realmente necessário, porém tenho dúvidas se pode-se, independente da opinião particular, infringir uma lei positiva que encontra amparo e respaldo na justiça, como é esse caso (e não o da lei seca, por exemplo), simplesmente por se dicordar dela. Nesse caso, estariamos indo contra a autoridade constitucional (algo mau se a lei for boa ou neutra, e bom se a lei for má) e também dos princípios que justificam, ao menos parcialmente, tal lei.

Não vou negar que já comprei muito software pirata. Hoje não o faço mais por me sentir moralmente desconfortável.


Saíndo dos princípios e indo para a prática, a questão se complica ainda mais. Porque, se por um lado o princípio imutável parece estar sendo tratado com mais brandura, de forma oposta as más conseqüências diretas parecem estar também se amenizando. Muitas empresas multinacionais, por exemplo, não se importam nem um pouco com a pirataria, porque seu lucro não está na quantidade de produtos vendidos, mas sim no prestígio de inovar e liderar o mercado. A pirataria, ironicamente, poderia até contribuir para aumentar esse prestígio se ajudar a popularizar o produto. Penso que a Microsoft prefere que 10.000 usuários comprem (ou adquiram gratuitamente) o Office pirata, porque assim estas pessoas só se acostumarão a usar aqueles programas, e então ela pode licenciá-los nas empresas, por um preço bem mais alto por máquina, e a empresa teria que aceitar, pela popularidade do produto.

Mas aí já entra na questão da aquisição / distribuição gratuita também, então é difícil avaliar.

Um problema que vejo para avaliar a questão é que, antigamente, não havia como replicar um produto garantindo a integridade do serviço internte a ele. Se eu fabrico cadeiras, meu concorrente não pode simplesmente replicá-las; terá que produzi-las sob as mesmas condições, e as caracteríticas seriam diferentes, dando ao cliente a possibilidade de escolha, baseado na confiabilidade etc. Com o advento dos produtos digitais, torna-se fácil replicar o produto com as mesmas e exatas funcionalidades, sob condições insignificantes. Claro que o produto original inclui garantia, manual de instruções, etc, mas o produto, em si, é o mesmo.

Temos o direito de replicar dessa forma um produto que demorou anos de estudo para ser desenvolvido? Não seria como a pessoa invadir minha fábrica e produzir trocentas cadeiras, sem custo algum, e vendê-las (ou mesmo distribuí-las)? Por outro lado, não seria natural a empresa prever essas tendências e ter que tolerá-las?

Fica a reflexão!

Eu baixo livro pela internet somente para leitura. Se fosse pecado, teríamos que pagar ao autor cada vez que emprestarmos um livro da biblioteca.

Quanto a filmes, só baixei dois até hoje. A velocidade da minha conexão é baixíssima, leva dias. Nem deve ser pecado. Chega a ser penitência.  

Alguns levam o argumento para um lado em que a posição é completamente falha pois possui contra-exemplo: Se fosse porque a pirataria retira empregos, então também seria pecado mortal e imoral usar calça jeans, pois ela é produzida industrialmente em lote (o corte é feito a laser por robôs); o certo seria usar calças de linho costuradas à mão de modo a não retirar o emprego dos alfaiates e costureiras...

Francamente, não acredito que isso posso seriamente se configurar como pecado. Até porque, quem investe em um negócio investe em um risco. Não é porque eu criei um produto que as pessoas são obrigadas a me pagar para se beneficiarem dele. O artista apenas gostaria que isso sempre fosse assim para obter maior lucro, mas isso não se sustenta em nenhuma lei natural. Se os fatores externos da pirataria chegarem ao ponto de levar o negócio à falência, não é porque "superabundou o pecado", mas simplesmente porque o meio escolhido para vender seu produto é ineficaz.

No final das contas, ninguém compra o produto inteiro. Quem compra um CD original compra todo o serviço envolvido no processo de elaboração do mesmo: o encarte, a etiqueta, a garantia, o selo de qualidade, a nota fiscal... A pessoa se beneficia do que lhe é oferecido pelos meios propostos. Se a pirataria fosse completamente equivalente a isso, então seria roubo, porque se trataria de um produto inteiro, manufaturado, que caiu na mão de alguém sem a permissão de quem o adquiriu (roubo numa loja, por exemplo). 

Mas notem: mesmo esse caso se aplica somente quando há um detentor do produto, ou seja, alguém que primeiramente pagou por ele. Um roubo só é roubo porque se configura como subtração de um bem monetário imbutido na categoria de um bem físico. O criador de uma música não é seu detentor natural. O escritor de um poema não é seu detentor natural. Os direitos autorais e de cópia são um mecanismo de amparo ao mercado, não uma necessidade intrínseca à lei natural. 

Fecho o artigo com as palavras do confrade Rafael Vitola Brodback:

A questão é que, assim como nem todo pecado é necessariamente crime, nem todo crime é necessariamente pecado. Quem estabelece os crimes é a lei POSITIVA de um Estado soberano. Quem estabelece os pecados é a lei NATURAL, a lei MORAL e a lei positiva DIVINA.

Moralmente, o direito de propriedade deve ser respeitado. O Magistério é farto a esse respeito.

Todavia, temos de diferenciar a propriedade intelectual da propriedade material. Esta, por ser natural, deve ser melhor protegida.

Penso que não é pecado, EM SI, a pirataria, i.e., a violação da propriedade intelectual. O pecado seria lucrar em cima disso, pois há um aproveitamento sem a contrapartida do investimento.

Na situação descrita, pecado não é.

Ilegal é. Mas é imoral? As duas esferas NEM sempre se confundem. Pode ser proibido, por exemplo, algo que não é necessariamente pecado. 

PARA CITAR ESTE ARTIGO:


A questão da pirataria - parte II
David A. Conceição, setembro de 2012, blogue Tradição em Foco com Roma.



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