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Espaço do leitor - Torturas e Inquisição


Recebemos de um leitor um pedido de esclarecimento sobre uma postagem do blog a respeito da Idade Média, segue abaixo a solicitação do mesmo e o esclarecimento de sua dúvida, que espero ser proveitosa para todos!

Olá! Salve Maria! Gostaria que me esclarecessem uma dúvida. O vídeo fala que não houve tortura na atuação da inquisição. Sempre ouvi dizer que havia métodos de tortura utilizados pela mesma. O vídeo fala que isso não ocorria e ainda esclarece a questão da pena de morte. Mas,o que não está claro para mim é a questão da tortura. Vi num documentário que havia até um livro de regras que previam a tortura.

Os mitos sobre a Idade Média


No século XII havia um esforço para conhecer e compreender as correntes não-cristãs, mas que de maneira nenhuma pode se assemelhar ao atual movimento irenista, que relativiza as confissões religiosas como se fossem a mesma coisa. Pedro, o Venerável, abade de Cluny, fez com que se traduzisse desde 1141 o Talmude dos Judeus e o Alcorão dos muçulmanos. Nesta época, em seguida, tornou-se obrigatória para todos os pregadores das cruzadas a LEITURA DO ALCORÃO.

Se alguém pensa que, na Idade Média a expressão "Hospedagem de Deus" ou "Casa de Deus" era usada pelos cristãos para os templos religiosos, com certeza se surpreenderá, pois este tratamento aos lugares onde se acolhiam e tratavam, GRATUITAMENTE, pobres, doentes, miseráveis.

Os estatutos das ordens hospitaleiras prescreviam receber os doentes, QUEM QUER QUE FOSSEM ou de onde viessem, "como senhores da casa".

Estas breves amostras servem para todos aqueles que bradam sem serem contestados, que só após o Concílio Vaticano II, a Igreja compreendeu que servir ao próximo é servir a Deus, e que esta descoberta desnorteante na história do Cristianismo iria modificar por completo a vivência de base e até mesmo o comportamento global no meio cristão.

Ainda hoje, apresenta-se como histórica a frase famosa atribuída ao legado papal Arnold de Citeaux, durante a cruzada contra os albigenses: "MATAI-OS TODOS, DEUS RECONHECERÁ OS SEUS"que provocou o massacre de Béziers, em 1209.

Quanto à veracidade desta frase, que já virou jargão em muitos ambientes anti-católicos: A historiadora Régine Pernoud escreveu em seu livro Idade Média - Idade da Luz "Ora, desde 1866 um erudito demonstrou, sem sombra de dúvida, que a frase não poderia ter sido pronunciada já que não a encontramos em nenhuma das fontes históricas da época, mas apenas no Livro dos Milages, Dialogus Miraculorum, cujo título diz exatamente sobre o que pretende falar. Esta obra foi escrita cerca de 60 anos depois dos fatos pelo monge alemão Cesário de Heisterbach, autor dotado de imaginação fértil e bem pouco preocupado quanto à autenticidade histórica. Desde 1866, nenhum historiador, é inútil dizê-lo, levou em conta o famoso "Matai-os todos"; mas os escritores de História o utilizam ainda e isto basta para provar quanto as descobertas científicas, neste caso, custam a penetrar no domínio público".

Em outras palavras, os estudiosos mais sérios estão convencidos de que são palavras apócrifas, que só servem para aguçar os sentimentos dos anti-católicos quanto à tomada de Béziers, que realmente teve excessos. Quem já leu o Nome da Rosa talvez se lembre que, no primeiro dia, numa conversa entre o frei Guilherme e o abade, este último faz esta citação.

Pergunto: Eco ignorava que esta frase é considerada apócrifa? Ou será que era do seu desejo repetir essa mentira, até que fosse assimilada como verdade pelos leitores? Dizem que uma mentira repetida nove vezes, na décima vira verdade. No mínimo foi um escorregão feio no livro "O Nome da Rosa"...

Explicações para o rigor judicial

1. Geral aceitação do rigor

Os historiadores estão de inteiro acordo sobre o fato de que o povo em geral, de todas as classes sociais, aceitava pacificamente os rigores do sistema repressivo, encarando-os com absoluta naturalidade, como algo normal e necessário.

Os grandes juristas da época, homens respeitados pelo saber e prudência, estruturaram e defenderam a inquisitio, com suas denúncias anônimas, seus processos secretos, o sistema das provas legais, a tortura. Tudo isso foi aprovado pelos Mestres Bartolo e Baldo, no século XIV; por Angelius de Aretio, no século XV; no século XVI, por Hippolytus de Marsiliis, Julius Clarus, Farinacius, Menochius, na Itália, Carpzov e Schwarzenberg na Alemanha.

As vozes timidamente adversas, quanto a alguns aspectos da inquisitio, foram raríssimas. A legitimidade da tortura, por exemplo, não suscitava nenhuma dúvida. O grande Farinacius a apoiou como medida indispensável, elogiando os juízes que "inveniunt novas tormentorum species". Como dizia Afonso X, o Sábio, de Espanha, os suplícios se justificavam porque provinham dos jurisconsultos romanos. A pena de morte não teve igualmente reais opositores, mesmo porque, em seu prol, havia este ensinamento de São Tomás de Aquino: assim como ao médico é lícito amputar o membro infeccionado para salvar o corpo humano ameaçado, deve ser permitido ao principe eliminar o elemento nocivo ao organismo social.

No teatro, falava-se da tortura como algo que integrava a vida comum. Racine, em Les Plaideurs, apresenta certo diálogo em que um dos personagens convida outro para assistir a uma sessão de tortura; e, diante da pergunta sobre se seria possivel ver sofrer um infeliz, responde com bonomia: "Bien! cela fait toujours passer une heure ou deux". De igual modo Molière, em L'Avare (ato IV, cena 7). Madame de Sevigné, em 1676, refere tranquilamente os suplícios da questão; e em outra oportunidade reclama dos camponeses, que "não se cansam de se fazerem enforcar" (Nos paysans ne se lassent pas de se faire pendre).

Na Enciclopédia iluminista de 1751, quando portanto já seguia alto o século XVIII, no verbete "Anatomia" está empenhadamente recomendada a vivissecção de criminosos, nas Faculdades de Medicina, para proveito dos estudantes; porque, explica-se com naturalidade, "de qualquer modo que consideremos a morte de um malvado, ela será tão útil à sociedade no meio de um anfiteatro quanto sobre um patíbulo" (Encyclopédie, ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, tomo I, Anatomie, Paris, 1751.

Como terá sido possível tanta brutalidade ser tão tranquilamente aceita? Inegavelmente, como razão primeira há de estar a rudeza da vida de então e dos costumes vigentes. Com mais método, porém, podemos discernir a existência de fatores internos à Justiça e fatores a ela externos, pertencentes ao ambiente social.

2. A proliferação de crimes

A proliferação de crimes constituia verdadeira calamidade. Não havia nenhuma segurança nos campos, nas estradas, nas cidades. Tudo se achava infestado por legiões de assaltantes, muitas vezes organizados em bandos, de assassinos, de ladrões, trapaceiros, prostitutas, mendigos, etc. As crises periódicas por que passava a agricultura despejavam nas cidades multidões de desempregados e de miseráveis. As frequentes guerras produziam populações errantes; a soldadesca de mercenários, nos intervalos entre os combates, não tendo o que fazer, se entregava a assaltos e a pilhagens.

Escusa enfim desdobrar todo o triste panorama, que facilmente imaginamos, daqueles tempos confusos. Concomitantemente, inexistia qualquer política social eficaz. Coube então à Justiça Penal a tarefa de suprir essa falha, contendo os insatisfeitos e ordenando a sociedade; o que ela fez através do terror.

3. Dificuldades para a sua apuração

Dispõe hoje o Estado de fartos recursos que o ajudam no trabalho de proteção social contra a delinquência.

A moderna Criminologia desvenda as forças criminógenas e indica os meios de enfrentá-las. Integram-na a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia e a Psiquiatria criminais. A Crimininalística, a seu turno, põe à disposição das autoridades variadas ciências e técnicas adequadas à apuração de um crime e à descoberta do seu autor. Com esses objetivos, temos a Medicina Legal, a Física, a Química, a Toxiocologia, a Datiloscopia, a Documentologia, etc.

Todos os países possuem uma Polícia formada por profissionais especializados no combate à criminalidade. As cidades são bem organizadas, as ruas possuem nomes, as casas têm números.

As pessoas portam obrigatórios documentos, com fotografia, que as identificam. Tudo isso presente, podemos dizer que, pelo menos teoricamente, a Administração Pública atual dispõe de meios para descobrir e apanhar todos os malfeitores.

Conseguintemente, espera-se hoje que a possibilidade mais fácil de serem descobertos e punidos contenha muitos delinquentes potenciais, de sorte que as penas podem ser mais brandas, isto é, podem ser adequadas com justiça à gravidade de cada infração.

Sucede porém que todas as mencionadas ciências e técnicas que auxiliam no combate à criminalidade são recentíssimas, começaram a surgir há pouco mais de um século. Antes, se não houvesse prisão em flagrante, as autoridades ficavam diante de imensa dificuldade para descobrir e prender os autores dos crimes. Sequer existia uma polícia organizada, com agentes especializados. Na França, somente em 1667 nasceu, em Paris, um embrião de organização policial. As tarefas investigatórias competiam aos funcionários administrativos comuns.

Diante de tantas dificuldades para uma eficaz proteção social, dois remédios foram adotados; a Justiça incentivava ao máximo as delações secretas, de modo que qualquer pessoa do povo podia acusar outrem, conservando-se no anonimato e a salvo de represálias; depois, o juiz buscava extorquir a confissão do suspeito, mediante a tortura.

No moderno Direito vigora o princípio de que o réu deve ser presumido inocente, enquanto não houver sentença contraditória. Outrora, vigia o princípio inverso: a mera circunstância de se achar alguém submetido a processo criminal induzia a presumir sua culpa. Nenhum empecilho de consciência havia, portanto, para infligir a tortura a um acusado.

4. Finalidades das penas

Não se cogitava de penas com função reeducativa, exceto no Direito da Igreja. Os castigos da Justiça comum tinham mais propriamente o sentido de vingança, contra aquele que violara as ordens do rei e que era depois julgado pelos seus juízes.

A par disso, a punição devia ser exemplar, escarmentando o povo, a fim de convencê-lo a respeitar as leis. Para tanto, quanto mais severa, melhor seria a pena. Aquele que praticasse um crime contava com forte possibilidade de não ser descoberto, graças à precariedade dos meios investigatórios; mas ai dele se fosse apanhado: as consequências seriam terríveis.

Portanto, seja como vingança, seja como advertência à sociedade, as sanções, em si, não estavam ligadas a nenhuma idéia de justiça. Era desconhecido, já sabemos, o princípio da proporcionalidade entre o crime e a pena. Ao contrário, esta devia ser muito vistosa, para melhor impressionar os que dela tomassem conhecimento.

Daí a grande preocupação em conferir a maior publicidade possível à execução dos castigos, notadamente os corporais, concitando-se a população a assistí-los. O cortejo seguia pelas ruas com grande aparato e arruído, o condenado à frente, e a imposição da pena se fazia em praça pública, demoradamente, diante da multidão que para lá acorria. Havia estudada teatralidade, para mais eficazmente impressionar os presentes e fazê-los temer a Justiça.

Segundo Cantu, "os suplícios eram dados no tempo do carnaval, e se procurava que, durante este, houvesse torturas todos os dias, para escarmentar os delinquentes" (op. cit., pág 19). Acrescenta N. Leven que "os costumes do povo eram tão bárbaros quanto as leis; ele amava os suplícios como as festas públicas, e os sofrimentos do paciente sob a roda ou na fogueira divertiam a massa tanto quanto as caretas de um bufão na feira" (op. cit., pág. II).

Referências para estudo:

A Igreja das Catedrais e das Cruzadas
, de Daniel Rops.

GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. Editora Saraiva, 1ª edição, 1993.

Charle, C.; Verger, J.; História das Universidades; Tradução: Elcio Fernandes; Editora da Unesp: São Paulo, 1996.

Verger, J.; As Universidades na Idade Média, Tradução: Fúlvia M. L. Moretto; Editora da Unesp: São Paulo, 1990.

(Cfr. Rino Camimilieri, La Vera Storia dell'Inquisizione, Piemme, Casale Monferrato, 2001, p.48).

 

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