.

[FSSPX] Catecismo da crise da Igreja - Parte II

Foi lançado pela Editora Permanência um catecismo de clichês sobre a visão da FSSPX da crise da Igreja que já estamos careca de saber, mas desta vez catalocado para consultas.

Em 100 perguntas principais e demais subperguntas, uma será destaque para o conteúdo do artigo II:

A Missa Nova ( doutrina verdadeira do Concílio de Trento, explicação da revolução protestante e análise do texto do Novo Rito) Resposta:

Há contradição entre as rubricas do Concílio de Trento e a Instrução Geral do Missal Romano?

A primeira coisa que se percebe na leitura desse "catecismo" é que existe sim uma inegável diferença entre eles. Disto ninguém poderá discordar. O que importa saber aqui é se esta diferença representa uma contradição. Na hermenêutica católica parece bastante evidente que não. Explicaremos o porque...

Os dois trechos não são em nada contraditórios pelo simples fato de que não tratam da mesma coisa. Repare bem, releiam as citações, e perceberão que nenhuma das duas referem-se ao Sacramento, mas ao modo de celebrar, ou seja, ao Rito. Ora, se tratam-se aqui de dois Ritos diferentes, é óbvio que não referem-se ao mesmo tema. Vamos olhar as citações com calma. Primeiro o Concílio de Trento:

"956. Cân. 9. Se alguém disser que o rito da Igreja Romana que prescreve que parte do Cânon e as palavras da consagração se profiram em voz submissa, se deve condenar... seja excomungado [cfr. n° 943, 945 s]."

Destacado as partes que gostaria de frisar. O cânon é bastante claro e preciso: é punido com excomunhão quem ousar condenar o rito da Igreja Romana que prescreve a voz submissa. Está perfeito! Uma vez que esta modalidade com a qual se profere parte do Cânon e as palavras da consagração estão plenamente de acordo com todo o rito que se estava codificando.

É confortável encontrar pessoas dispostas a ler os documentos Conciliares. Portanto, caminhando ainda na estrada segura de Trento, encontramos tal afirmação:

Concílio de Trento Dz 1728: "Além disso declara que esse poder desde sempre houve na Igreja, que na dispensação dos sacramentos, respeitada a substância deles, estatuísse ou mudasse aquilo que julgasse mais conveniente à veneração destes sacramentos e à utilidade dos que os recebessem, de acordo com a variedade das circunstâncias, dos tempos e dos lugares."

Se não fosse dada a fonte, é possível que muitos até acusassem estas palavras de modernistas, não é mesmo? Contudo, eis aí o testemunho da tradição que valida sobremaneira a iniciativa do Papa Paulo VI de propor um novo rito, um novo “Ordo Missae”.

Sendo assim, a Instrução Geral do Missal Romano trata, obviamente, do devido modo de celebrar o atual Rito, não do Rito anterior. Portanto, é dentro exclusivamente do novo rito que se deve ler a afirmação:

“A natureza das partes ‘presidenciais’ (Oração Eucarística) exige que sejam proferidas em voz alta e distinta, e por todos atentamente ouvidas”

Ambos os Ritos são válidos e apreciados pela Igreja. São diferentes na forma, idênticos nos fundamentos, mas jamais contraditórios.

Uma pequena reflexão:

Na instituição da Eucaristia, Nosso Senhor proferiu as palavras da consagração em voz submissa? Se foi, como os apóstolos puderam retransmiti-las? Isto invalida o rito tridentino? De modo algum!

Em primeiro lugar, é importante que se diga que a afirmação de que o Rito de Paulo VI “não apresenta da maneira devida os dogmas católicos sobre o Santo Sacrifíco” é uma opinião pessoal com a qual não concorda o Magistério da Igreja. A quem cabe legislar sobre o assunto o atual Rito parece bastante apropriado, independente dos abusos que se cometam aqui e acolá. Também no Rito de Pio V se cometeram abusos que, por justiça, não foram tributados à lei litúrgica.

Além disso, afirmar que o Rito “pouco a pouco, inocula a Igreja de idéias estranhas” e que “não promove abertamente a heresia, mas tende a tal ação” é um eufemismo para dizer que ela é sim herética, sempre segundo a opinião pessoal de alguns. Se assim não fosse, a conclusão não seria: "isso já é motivo o bastante para rejeitá-la". Ora, um Rito que conduz à heresia já seria, obviamente, herético.

Esse "catecismo" afirma rejeitar um Rito que é válido! Qual seria um motivo justo para tal atitude se não que este Rito seria, por alguma razão, heterodoxa ou herética? Contra esta posição, citamos aqui o Pe. Gaspar Pelegrini, porta-voz da Administração Apostólica São João Maria Vianney:

"Porque, se considerarmos, na teoria ou na prática, a Nova Missa, em si mesma, como inválida ou herética ou sacrílega ou heterodoxa ou pecaminosa ou ilegítima ou não católica, deveríamos tirar as conseqüências teológicas dessa posição e aplicá-la ao Papa e a todo o Episcopado residente no mundo, isto é, a toda a Igreja docente: ou seja, aceitar que a Igreja oficialmente tenha promulgado, conserve há décadas e ofereça todos os dias a Deus um culto ilegítimo e pecaminoso – proposição condenada pelo Magistério - e que, portanto, as portas do Inferno tenham prevalecido contra ela, o que seria uma heresia. Ou então estaríamos adotando o princípio sectário de que só nós somos a Igreja e que fora de nós não há salvação, o que seria outra heresia. Essas posições não podem ser aceitas por um católico, nem na teoria nem na prática."

A primeira coisa que se pode perceber na análise desse "catecismo" é o fato de que as acusações ao novo Rito ficam sempre no âmbito da “ambigüidade”. O que não é verdade. Porque faz uma “livre-interpretação” dos textos eclesiásticos, sua análise escorrega no seguinte ponto, que fundamenta todas as tuas acusações: Contrapor a Hierarquia da Igreja ao conceito de “Povo de Deus”;

Ora, o termo “Povo de Deus” refere-se, como deixou claro o CVII, à Igreja como um todo e não somente aos leigos. Assim, todo o Clero e os leigos constituem, em unidade, o “Povo de Deus”. Esta realidade é evidenciada na ação litúrgica, como se percebe no trecho abaixo:

"Alerta também o Santo Concílio, que é preceito da Igreja, que os sacerdotes misturem água com o vinho que haverão de oferecer no cálice, seja porque se crê que assim o fez Cristo nosso Senhor, seja também porque na chaga de seu lado, na cruz, verteu água e sangue, cuja mistura nos recorda aquele mistério, e chamando o bem-aventurado Apóstolo São João aos povos de 'Águas', se representa a união do mesmo povo com sua cabeça, Cristo." (Conc. de Trento, Cap. VII, Sessão XII)

Se toda ação Litúrgica é ação da Igreja (uma vez que nenhum sacerdote celebra somente por si) se pode dizer com precisão que em toda celebração é a Igreja que celebra. Trocando os significantes, conforme acima, temos: é o Povo de Deus que celebra! Isto fica bastante claro quando a Instrução Geral do Missal Romano trata da Celebração Eucarística sem a participação da assembléia:

"Embora às vezes não se possa contar com a presença dos fiéis e sua participação ativa, que manifestam mais claramente a natureza eclesial da celebração, a celebração eucarística conserva sempre sua eficácia e dignidade, uma vez que é ação de Cristo e da Igreja, na qual o sacerdote cumpre seu múnus principal e age sempre pela salvação do povo." (IGMR, 19)

É próprio do múnus sacerdotal, exclusivamente, oferecer o Sacrossanto Mistério: corpo, sangue, alma e divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, fazendo as vezes de Cristo Cabeça, mas jamais sem o corpo.

Compare-se este trecho, acima citado, com o Cap. VI da Sessão XXII do Concílio de Trento, que trata “da Missa em que comunga somente o sacerdote”:

"[...]nem por isso classifica como privadas e ilícitas as Missas em que apenas o sacerdote comunga sacramentalmente, porém, pelo contrário, as aprova e as recomenda, pois aquelas Missas também devem ser tomadas com toda verdade comuns de todos, parte porque o povo comunga espiritualmente nelas, e parte porque se celebram por um ministro público da Igreja, não apenas por si, mas por todos os fiéis que sejam membros do corpo de Cristo."

Onde está “a mais grave das incorreções”? Vale lembrar: incorreto é sinônimo de heterodoxo... e assim voltamos à questão da condenação(!) do Novo Rito.

Algumas questões menores...

Afirmou-se: ” Numa definição da Missa, ainda que meramente descritiva, não pode faltar de maneira alguma o seu elemento principal, que é a noção de sacrifício propiciatório”

Ora, a noção de sacrifício, no contexto da celebração litúrgica da Missa, já implica, necessariamente a idéia de propiciação. Desconhecer isto é desconhecer toda a doutrina sobre o Sacrifico salvífico de Cristo.

Também foi dito: ”Sem dúvida, há partes da Oração Eucarística que são dirigidas a Deus em nome do povo. Mas sua parte principal, que é a consagração, é dita pelo sacerdote exclusivamente em nome de Nosso Senhor. É impossível para um católico, neste ponto, admitir qualquer ambigüidade."

Esta frase apenas reforça a ortodoxia do Novo Missal, pois está completamente de acordo com o que mostrou a própria Instrução Geral. Apenas um detalhe: o sacerdote não profere as palavras da consagração “em nome de Nosso Senhor”, mas na pessoa de Nosso Senhor (in persona Christi). Esta sim é uma afirmação bastante heterodoxa, que não esperávamos do autor que se mostra tão preocupado com a ortodoxia...

Ser coerente é fundamental!

É inacreditável que alguém com um mínimo de inteligência e conhecimento do que venha a ser a Igreja e sua hierarquia possa levantar um “argumento” como este: ” pois não está provado que adesão, pelo menos no que tange ao Sumo Pontífice, ao erro é manifesta e consciente.” É, sem sombra de dúvidas, o pior argumento que já visto! Dizer que o Papa não tem consciência do que faz ao Celebrar uma Missa, que ele não siga a lei litúrgica de forma manifesta e consciente é um absurdo tão fora de sentido que extrapola qualquer pretensão de seriedade discursiva. Ou seja, é rir para não chorar...

Do mesmo modo, manifesta-se mais uma vez a sempre mais evidente falta de conhecimento da história eclesiástica quando se pretende dizer que, por ocasião do ataque arianista, que a ortodoxia tenha-se limitado a um “pequeno grupo”. É fato que esta heresia fez numerosas vítimas, mas daí a imaginar que ela foi defendida por esmagadora maioria na Igreja é faltar com a verdade.

Sobre a escolha de lado ao qual aderir, não deve haver dúvida alguma no coração de um verdadeiro católico: optemos sempre pelo Magistério da Igreja. É este Magistério, sempre vivo e atuante por graça de Deus, que conduziu a Igreja, mesmo diante dos mais terríveis momentos da história.

Como quiseram puxar aqui Santa Catarina de Sena para o time dos detratores do Santo Padre, vejamos o que ela pensava a este respeito:

"É louco aquele que se afasta ou vai contra esse Vigário, que tem as chaves do Sangue de Cristo Crucificado. Ainda que fosse um demônio encarnado, eu não devo levantar a cabeça contra ele, mas sempre humilhar-me, pedir o sangue por misericórdia. E não admireis que o demônio vos porá e vos tenha posto diante a cor da virtude, isto é, uma justiça de querer agir contra os maus pastores pelos seus erros. Não creiais no demônio, não queirais fazer justiça sobre aquilo que não vos diz respeito. Deus não quer que vós, nem ninguém, vos façais justiceiros de seus ministros. Ele o confiou a si mesmo, e isso mesmo confiou ao seu Vigário; e se o Vigário não o fizesse, humildemente deveríamos esperar a punição e correção do Sumo Juiz, Deus Eterno" (Epistolário, vol I, Carta n. 28)

Portanto, ela acreditava, com razão, ser demoníaca esta concepção de justiça que se arvora no direito de julgar até mesmo o Papa.

Missa de Paulo VI e significado de Sacrifício

Não há problema em dizer que um rito explicita mais a noção de sacrifício. O erro é dizer que:

a) o rito novo não é um sacrifício (tese de alguns extremados, que consideram a Missa moderna inválida);

b) ou que não explicita nada do sacrifício.

Agora, dizer que um explicita mais ou explicita menos não tem problema, feitas as devidas cautelas. Desde que se saiba que, embora - falando apenas em tese - um rito não explicite tanto quanto outro, ao menos explicita suficientemente.

A reforma foi positiva em vários aspectos, mas perdeu-se alguns elementos tipicamente sacrificais e que deveriam ser restaurados em uma eventual reforma da reforma. As orações ao pé do altar, por exemplo, remetiam claramente ao sacrifício, assim como o ofertório tradicional. Removidas aquelas e mudado aquele por um outro texto (bonito, inspirado nas bênçãos judaicas e da Igreja primitiva, mas muito mais pobre do que o tradicional), é evidente que a noção de sacrifício, ainda que não comprometida ou defeituosa, ficou, digamos, menos explícita.

O Cânon Romano no rito tradicional e no rito moderno não diferem quanto à fórmula (exceto em duas partes da Consagração, mas não na forma substancial do sacramento). A diferença é mais nas rubricas. E são bem ínfimas, notadas só por quem conhece do assunto, quem gosta de liturgia.

Não se trata de um novo Cânon Romano, mas do mesmo, desenvolvido com levíssimas modificações.

A noção sacrifical permanece intacta nas duas orações eucarísticas (antiga e nova).

Há a acusação de que o Papa Paulo VI, ao promulgar o "Novus Ordo Missae" de 1970, teria ido de encontro a uma determinação infalível de um Papa anterior, que teria definido:

"Com este nosso decreto, a valer na perpetuidade, determinamos e ordenamos que nunca será nada acrescentado, omitido ou alterado neste Missal...”
(Papa São Pio V – QUO PRIMUM – 19 de julho de 1570)

É um erro pretender que o rito romano reformado por Paulo VI seja um outro rito, diverso do rito romano tradicional. A Igreja Latina, à exceção de Braga, Toledo e Milão, tem por normativo o rito romano. Ora, ao adotar o Missal de 1970, deixando o de 1962, a Igreja Latina demonstra que não se trata da criação de um novo rito, mas da reforma do mesmo. A Constituição Apostólica Missale Romanum é clara nesse sentido: "Mas não se deve pensar que esta renovação do Missal Romano tenha sido feita de modo improvisado, pois o seu caminho foi preparado pelo progresso das disciplinas litúrgicas nos últimos quatro séculos."

Não há, outrossim, como existir dois ritos, com o mesmo nome (romano), com a mesma estrutura básica no Ordinário (Ato Penitencial, Kyrie, Glória, Coleta, Liturgia da Palavra, Credo, Ofertório, Oração sobre as Oferendas, Diálogo antes do Prefácio, Prefácio, Oração Eucarística, Doxologia, Pai Nosso, Cordeiro de Deus e Fração do Pão, Comunhão, Ação de Graças, Ritos Finais), com as mesmas ou semelhantes preces e antífonas no Próprio, com as mesmas ou semelhantes Missas Votivas, com calendários extramemente parecidos (distintos em alguns pontos, mas com a mesma estrutura), regidos pelos livros litúrgicos com os mesmos nomes (Missal Romano), e ainda assim pensar que se tratam de dois ritos distintos.

Mais ainda. Na Missale Romanum, Paulo VI insere a reforma do Missal na mesma tradição litúrgica que vem desde os primeiros tempos da liturgia romana, e explicita, de modo inequívoco, que o Missal Romano restaurado por decreto do Concílio Ecumênico Vaticano II, é o mesmo Missal de Pio V, reformado. O mesmo rito, portanto, na essência, ainda que acidentalmente diverso. Pelo texto da Missale Romanum, não há dúvida de que o Papa pretendia reformar o Missal, não criar um novo rito distinto. No primeiro parágrafo, une o Missal por ele promulgado ao Missal de São Pio V. No segundo, ainda nessa explicação, demonstra que sua reforma é continuadora da reforma de Pio XII. Impossível, diante disso, afirmar que se trata de mera criação de um rito novo. É a reforma do mesmo rito, o rito romano, e, como toda reforma, há acréscimos, supressões e mudanças. Pode-se discordar de alguns desses acréscimos, algumas dessas supressões ou mudanças. Esperamos que na "reforma da reforma", o rito romano reformado por Paulo VI e João Paulo II resgate certos elementos do Missal antigo, tradicional, que infelizmente se perderam (orações ao pé do altar, último Evangelho, oração à Santíssima Trindade no ofertório, obrigatoriedade da celebração versus Deum).

De qualquer modo, discordar, respeitosamente, de alguns acréscimos, supressões e mudanças é uma coisa. Não aceitar a reforma é outra. E pior ainda é afirmar que Paulo VI criou outro rito que pouco ou nada tem a ver com o de Pio V, como se o rito romano reformado ou renovado não fosse o rito romano clássico ou tradicional (chamado tridentino).

Também a Instrução Geral do Missal Romano, em sua terceira edição típica, nos números 6 a 15, explica, com riqueza de detalhes, que o Missal é substancialmente o mesmo. Houve uma reforma do rito romano, não a criação de um novo rito, alternativo ao tradicional. O subtítulo inserido entre os números 6 e 9 da IGMR é ainda mais expressivo: "Testemunho de uma tradição ininterrupta", ou seja, Paulo VI e João Paulo II entendem, com a reforma, continuar a obra de Pio XII, e vêem uma linha, como a IGMR mesmo diz, "ininterrupta" entre a edição príncipe de São Pio V e o Missal restaurado pelo Vaticano II e por eles promulgado.

Isto posto, vamos às questões controversas.

O objeto da Bula Quo Primum Tempore é a promulgação do Missal Romano, em substituição a todos os missais ocidentais em vigor, com exceção daqueles que já estivessem em uso há 200 anos. Só que as expressões da Quo Primum, em que alguns se baseiam para defender a irreformabilidade do Missal de São Pio V, se referem à autoridade papal e não ao texto do Missal. Aqui está uma sutileza que uns parecem não entender. Claro que a matéria da Quo Primum é o Missal, não a autoridade; contudo, os termos da Bula, usados por vários para dizer que o tridentino não pode ser reformado, que está "canonizado", não se referem ao texto litúrgico em si mesmo, mas apontam para o Papa, atribuindo-lhe como que uma reserva legal.

A matéria da Quo Primum é o Missal, não a autoridade do Papa sobre liturgia. Mas as palavras que parecem significar uma irreformabilidade do Missal de Pio V não significam isso. Quando o Papa São Pio V fala que o Missal por ele promulgado é perpétuo, etc, está dizendo que ninguém mais crie novos missais, à semelhança dos que existiam (os locais) e foram revogados pela própria Bula. Ou seja, além de revogar os missais locais, impede a criação de novos. Resta perguntar: essa proibição é dada a quem? Pio V está proibido quem de reformar o Missal ou de criar novos? Poderia o Papa impedir que outro Papa, que tem a mesma autoridade que ele, disciplinasse a liturgia? Um Papa anterior, em atos de governo, obriga ao posterior? Veremos no ponto seguinte.

A Quo Primum é um ato de governo. E como ato de governo pode ser reformada, mantida, abrogada e derrogada. Sustentar que a Quo Primum é irreformável implica em não aceitar que a disciplina litúrgica seja ato de governo, e sim de Magistério, o que é inverídico. A liturgia celebra a doutrina, a lei da oração reflete a lei da fé, mas a seqüência de cerimônias e as normas que as dispõe são atos típicos de governo. E, como atos de governo, podem ser reformados. Se o Papa não pode revogar atos de governo de seus sucessores, sua autoridade não é plena.

a Missale Romanum fala em derrogações, mas não especifica quais sejam nem mesmo diz que se referem à Quo Primum. Particularmente, creio que a derrogação, inserida no texto, se refere à possibilidade de uso do Missal tradicional. Mas veja, se esse Missal tradicional, após a promulgação do Missal de Paulo VI, pudesse ter um uso irrestrito, como se fosse tão normativo quanto o novo, ou como se fosse um rito distinto (aqui tomo "rito" não por concatenamento lógico de cerimônias, mas como produto de um desenvolvimento inserido em uma família litúrgica própria), Paulo VI não diria tratar-se de derrogação. Simplesmente, manteria a vigência da Quo Primum, ao lado da Missale Romanum: os dois documentos (atos de governo), com seus respectivos Missais. Não foi isso, todavia, que Paulo VI fez: ele derrogou a Quo Primum. Ou seja, revogou em parte e manteve a vigência em outra parte. O que foi revogado e o que foi mantido em vigência? Penso que a revogação se deu em relação à normatividade do Missal Romano de Pio V, mantendo-se a vigência no uso em certas situações (como mais tarde, João Paulo II irá dispôr na Quattuor abhinc annos e na Ecclesia Dei, e Bento XVI na Summorum Pontificum).

Uma vez instituída, promulgada (Lex instituitur cum promulgatur – CIC, cân 7), não pode ser modificada ou alterada à revelia desta autoridade por ninguém. Este é o sentido das palavras finais da famosa Bula Quo Primum Tempore de São Pio V. É evidente que o Papa não se referia aos seus sucessores, pois ele certamente sabia muito bem que tal poder de legislar não lhe cabe de modo exclusivo, mas diz respeito a todo aquele que ocupa validamente a Sé de Pedro e não a um único Papa específica e exclusivamente. O que um pode, todos podem. Se Pio V tivesse normatizado o Rito e impossibilitado todos os outros de fazerem, então teríamos aí um "super-Papa", que teria mais poder do que os outros. Uma aberração lógica!

Embora alguns discordem do fato do missal de 1969 não ser improvisado (a velha discussão da "liturgia fabricada"). Até pelo fato de ser a reforma mais radical que o missal romano sofreu, pelo menos nos últimos 500 anos, mas quiçá em toda a história da Igreja. Ainda mais pelo fato de, de maneira igualmente única, haver dois missais (do mesmo rito, é claro) em vigor. Por exemplo, não faria sentido ter em vigor o missal promulgado por São Pio X e o pelo Beato João XXIII, de tão semelhantes que são. A diferença entre os missais de 62 e 70 é tão marcada, mesmo se aplicarmos ao missal de 62 as reformas de 65 e 2008, e compararmos com a edição típica do missal de 2002, que há uma diferença notabilíssima para os fiéis entre eles.

O missal de 69 bebe da tradição romana, é inegável. Segue a estrutura da liturgia romana, também inegável. Mas não é uma reforma strictu sensu, no sentido que foram as reformas anteriores. Você não pode fazer o que era comum quando das reformas do missal: lançar um anexo de quatro páginas ao missal de fiéis dizendo quais foram as alterações. Não é possível descrever, em quatro páginas, as alterações entre 65 e 69. A dita reforma de 1969 não é uma reforma orgânica, e tem mais cara de ruptura que reforma, mais cara de fabricação nova (baseada nas idéias antigas, ressalte-se) que uma adaptação da apresentação da Tradição ao novo tempo (o dito aggiornamento)

Os ritos litúrgicos refletem a mentalidade própria da cultura onde se desenvolveram. Assim, é natural que os ritos das Igrejas Orientais demonstrem mais expressividade poética e caracteres explicitamente místicos. Seu esplendor pode soar exagerado a olhos ocidentais, mas, no fundo, não o é: apenas deriva do natural temperamento e estado anímico dos orientais. Seu ethos é mais místico, mais esplendoroso, mais simbólico, mais exuberante.

Ao contrário, a cultura ocidental, baseada, claro, nos valores gregos, mas temperados pelo aspecto quase taciturno dos romanos, é marcadamente simples. O espírito romano, latino, é sóbrio por excelência. Para os orientais, seríamos “frios”, assim como eles, para nós, soariam “exagerados” em sua pompa. São apenas os modos como os ritos se desenvolvem e tal é uma bênção para todos, uma prova da catolicidade da Igreja, cuja única doutrina se expressa, em mentalidades culturais distintas, por sinais igualmente distintos. A Igreja, desde cedo, chamou esse rico mosaico de “unidade na diversidade”.

O rito romano, então, por ter nascido da cultura do Ocidente, mescla ideal entre Roma, os celtas e os germanos, herdou a idiossincrasia própria desses povos, em um amálgama muito bem feito. A Civilização Ocidental e o rito romano possuem, pois, os mesmos princípios, pois são, um e outro, manifestações da mesma alma cultural.

Como o espírito romano (a que se somaram os celtas originários e os invasores germanos), assim é o rito que em Roma se desenvolveu e mais tarde ganhou a Europa. Aliás, o rito avançou pela Europa na mesma medida em que a cultura romana também o fez.

Daí que os princípios que regem o rito romano, o modo como celebramos a liturgia, seja muito adequado à civilização à qual pertencemos, à cultura em que estamos inseridos. As características dessa cultura ocidental é que informam o rito romano: praticidade, nobre simplicidade, sabedoria na solenização gradual das cerimônias, detalhamento legislativo (já que Roma é a pátria do Direito tal como o conhecemos).

O rito romano, então, é muito prático. Tudo nele tem uma função clara, não há aspectos etéreos como os ritos orientais, pois à alma ocidental não agrada riqueza de simbolismos profundamente escondidos (belos em si mesmos, mas que falam a outra cultura, não à nossa). A casula de corte romano, por exemplo, surgiu do encurtamento da gótica, para que o sacerdote pudesse incensar o altar com maior mobilidade (assim como o costume do acólito ou do diácono erguer levemente a barra da casula gótica para a mesma finalidade). O próprio incensamento é muito prático, com regras precisas e claras. A Comunhão dada, ordinariamente, em uma só espécie também deriva desse espírito de praticidade do rito romano.

Outro princípio do rito, e talvez sua mais acentuada característica, é o da nobre simplicidade. É por ele que temos na liturgia a elegância sem afetação, o esplendor do culto temperado pela discrição. A nobre simplicidade, que poderia ser entendida como austeridade, garante um cerimonial digno, distinto, com aspecto sacro, sem perder um certo e sadio pragmatismo da cultura romana. O rito romano é sóbrio, é grave. E essa sobriedade, essa gravidade, se vê nos próprios gestos: o sinal-da-cruz é feito de modo muito reverente, mas também simples e natural; a maneira de carregar a cruz processional, embora altaneira e, de certa forma, licitamente orgulhosa, é calma, sem pressa; os ministros no altar ocupam lugares previamente determinados sem precipitação, sem multiplicação de atos desnecessários, sem ênfases demasiadas. Há um comedimento nas cerimônias. Tudo é moderado, casto, continente, austero.

É bem romano, também, o modo de rezar, com as mãos unidas, uma à outra e, detalhe de beleza resultante da elegância simples do rito, sobrepor o polegar direito ao esquerdo. As genuflexões são, por sua vez, igualmente características do rito romano, uma vez que esse era o costume do tempo do Império ao saudar César e os superiores militares e civis de Roma. No Oriente, as genuflexões são desconhecidas, pois ela é tipicamente ocidental e, como tal, penetrou, por informação de nossa cultura, em nossa liturgia.

Tais características próprias do rito romano em nada desmerecem a natureza das celebrações nos outros ritos orientais e ocidentais. Cada um reflete a marca da sua própria cultura.

Aliás, mesmo as sub-culturas ocidentais, todas derivadas, pela expansão européia, da mesma matriz céltico-romana, porém misturadas com o elemento autóctone das Américas, da Oceania e de certos lugares da Ásia e da África, podem ter suas características respeitadas inclusive na liturgia. É o que se chama inculturação. Entretanto, tal processo não deve ser feito de modo a obscurecer a unidade substancial do rito romano. A inculturação não pode ser pretexto para modificar arbitrariamente cerimônias e ações rituais, ou para a criação ilícita de novos ritos. Além disso, qualquer alteração no rito romano para atender a desejos de inculturação, deve obedecer a um processo harmônico, natural, e ser aprovado pelo Sumo Pontífice, como foi o caso do uso zairense (na região do Congo) e do uso anglicano (para ex-membros da Comunhão Anglicana convertidos ao catolicismo), ambos formas distintas do único rito romano.

Um dos princípios da reforma de Paulo VI foi justamente tornar o rito romano mais romano ainda. Diziam alguns que o rito romano tal qual codificado por São Pio V continha muitos elementos gálicos (de origem oriental), e isso precisava ser extirpado. Assim, para eles, o rito romano moderno é mais fiel ao rito romano puro, e o rito romano tradicional é um misto de rito romano com usos gálicos.

Discordo. Com o Mons. Klaus Gamber e D. Alcuin Reid, OSB, penso que o rito romano tradicional, ao incorporar os elementos gálicos, não perdeu sua característica de sobriedade. Claro, ganhou mais colorido, mais esplendor, mas a nobre simplicidade não foi perdida. É preciso que os princípios não sejam tão absolutos a ponto de impedir o sadio desenvolvimento do rito. Claro que a incorporação dos elementos gálicos tirou a pureza do rito romano e ele não permaneceu tão austero, tão simples. Ainda assim, foi um processo natural. A meu ver, desprezar esse desenvolvimento e pretender uma simples volta à pureza primitiva é cair no erro do arqueologismo (ou antiquarianismo).

Isso não é uma crítica à reforma nem à autoridade de Paulo VI, tampouco ao rito moderno, mas uma discordância lícita e pontual ao modo como certos aspectos da reforma foram postos em ação.

Reconheço que o rito romano moderno, advindo da reforma, é mais fiel ao rito romano primitivo, puro, antes da incorporação dos elementos gálicos. Aliás, o rito romano moderno também vai beber no rito dominicano, que conservava a pureza original do rito romano. De qualquer modo, os novos elementos não tiraram do rito a sua característica.

Certas coisas na reforma foram excelentes: removeram a duplicação dos textos (na Missa cantada, por exemplo, o padre lia em voz submissa o que estava sendo cantado pelo coro e os fiéis; hoje, ele canta junto), a sobreposição de coletas foi extinta (permanecendo, opcionalmente, apenas no Ofício Divino), a gradação das festas foi simplificada.

O rito romano desenvolveu-se, basicamente, a partir da liturgia celebrada pelo Papa em Roma. Suas características de Missa solene pontifical logo foram adaptadas a todas as celebrações na urbe e, gradualmente, passaram à toda a zona de influência do Império.

Essa liturgia papal era, notadamente, a Missa descrita por Santo Hipólito, no século III, acrescentada de caracteres mais solenes, como o amplo uso do incenso, o canto durante todas as funções, os ministros auxiliares. O esquema da Missa já em Santo Hipólito é basicamente o mesmo que viria a alastrar-se pelo período medieval.

Com São Vítor I, Papa contemporâneo de Hipólito, a liturgia passou a ser celebrada em latim, ainda que certos resquícios de grego continuassem (perdurando até hoje, como, por exemplo, o Kyrie e, nas Missas papais, o Evangelho cantado).

Aos poucos, alguns elementos existentes na liturgia descrita por Santo Hipólito foram caindo em desuso, como as preces dos fiéis na chamada Oração Universal e a Procissão do Ofertório. O beijo da paz foi deslocado para depois do Cânon, e o número de leituras bíblicas reduzido. Nesse tempo, também, um calendário litúrgico foi sendo uniformizado, com lições para cada dia, e mesmo textos específicos para os Próprios (Coleta, Secreta e Pós-comunhão, além do Prefácio e das Antífonas) que variavam conforme a época ou a festa. O Cânon Romano começou a fixar-se também por esse período que vai do terceiro ao quinto séculos.

Começaram, desde cedo, a aparecer coleções do que viria mais tarde a ser chamado Próprio da Missa, as partes variáveis. Assim, temos os sacramentários de São Leão Magno e de São Gelásio I, importantes documentos medievais. Outros livros esparsos foram, aos poucos, se disseminando, contendo ora o Ordinário da Missa, ora figuras específicas da liturgia pontifícia, notadamente a celebrada na manhã do Domingo de Páscoa na Basílica de Santa Maria Maior.

Enfim, os decretos de São Gregório Magno estabeleceram um Ordinário para a Missa no rito romano, confirmando as modificações operadas na liturgia após a descrição de Santo Hipólito. Com a reforma gregoriana, as orações variáveis foram reduzidas a três em cada Missa, e o Cânon Romano ganhou sua redação fundamental definitiva.

Basicamente, a Missa celebrada pelo Papa era o modelo para as demais celebrações tanto em Roma, quanto no restante da Itália e mesmo, mediante os missionários que partiam como enviados do Sumo Pontífice, em outras regiões da Europa. Mesmo assim, permaneciam variações locais desse rito romano puro.

Ainda na Idade Média, os sacramentários e a reforma gregoriana começaram a se difundir pela Gália e pela Inglaterra, quer pela autoridade e prestígio da Igreja Romana, quer pela ausência de grandes sés primaciais que pudessem estabelecer uniformidades litúrgicas rituais, exceto Roma. Enfim, a cultura romana era a base da Europa, de modo que a aceitação do rito que a representava foi um processo bastante coerente e natural. Certo é que aquelas regiões tinham já seus ritos próprios, amoldados à mentalidade céltica, com seus mistérios e, diríamos até, extravagâncias (parecido seu ethos com o dos orientais bizantinos, com um amor muito característico à linguagem simbólica e à suntuosidade). Entretanto, eles passaram a absorver, alguns mais, outros menos, os elementos do incipiente rito romano. Outras utilizavam já o rito romano, mas em suas variações locais.

Esses ritos galicanos e ingleses passaram a conviver, lado a lado, com o rito romano puro e este, por sua vez, foi influenciado pelos primeiros. Assim, não só certos elementos romanos foram emprestados aos ritos galicanos, como elementos da esplendorosa liturgia original da Gália foram incorporados ao rito romano: o ritual da Semana Santa (especialmente a dramaticidade do Ofício de Trevas), a imposição das cinzas, as longas procissões antes da Missa em determinadas festas, a bênção dos ramos no Domingo da Paixão, o uso mais abundante de velas e tochas com acólitos específicos para portá-las, a incensação de pessoas e não só de objetos etc. Isso em nada prejudicou a nobre simplicidade do rito romano, mas o fez ganhar um colorido mais simbólico, mais suntuoso, até mesmo porque o povo ocidental não era apenas originário da antiga Roma, porém conservava também o elemento celta, mais afeito às maravilhas religiosas e pompas litúrgicas. O esplendor e a exuberância dos elementos orientais que se incorporaram ao rito romano mediante as liturgias galicanas foram perfeitamente amoldados à mente ocidental.

Essa situação perdurou até que Carlos Magno, Imperador do Ocidente e Rei dos Francos, determinou que a Gália, e, posteriormente, todos os seus domínios, seguissem exclusivamente o rito romano. A liturgia imposta por Carlos Magno foi aquela que constava do Sacramentarium Adrianum, compilação do Papa Adriano I, dos sacramentários Leonino, Gelasiano e outros.

Caía, assim, o rito galicano, mas alguns dos seus elementos, como visto, perduraram, pois o próprio rito romano já os tinha incorporados, bem como Alcuíno, monge inglês que auxiliou o Imperador no estabelecimento do rito romano, introduziu, no Adrianum os elementos locais do Sacramentário Gelasiano em uso nas Gálias. Certo é que dizer que, a partir desses anos, teríamos não um Ordinário romano, mas franco-romano, ou gálico-romano. E esse rito franco-romano é que se desenvolveria como a liturgia própria do Ocidente: mais nobre, mais simbólico do que o rito romano puro, original, todavia, sem perder sua simplicidade. Os monarcas que sucederam Carlos Magno consolidaram essa unidade litúrgica, e o rito romano seguiu incorporando novos dados.

Desse modo, a Missa que antes começava com o Intróito e a Saudação, agora passava a ter as Orações ao Pé do Altar, durante as quais se recitava o Confiteor. Eram preces privadas previstas para o sacerdote e os acólitos e, aos poucos, foram de tal sorte incorporadas no Ordinário que passaram a ser litúrgicas. A homilia passou a ser opcional, mesmo nos Domingos e festas. Enfim, a Missa passou a ser, comumente, rezada ao invés de cantada, deixando-se essa última opção para algumas mais importantes nas igrejas paroquiais e catedrais. Com o tempo, outrossim, o Ofertório perdeu a sua procissão.

Para a popularização do rito romano nos vários países, não nos esqueçamos da contribuição dos franciscanos, que levaram o Missal por todas as regiões do Ocidente por onde pregavam.

Pretendia-se com essa maior unidade litúrgica impedir que as heresias, sobretudo as de corte protestante, se alastrassem pelos missais locais. Muitos missais igualmente romanos estavam em vigor nas diferentes Dioceses do Ocidente, e as variações poderiam facilitar com que certas expressões heréticas pudessem ser incorporadas em livros litúrgicos usados naqueles locais que contassem com Bispos favoráveis aos erros de então. Para prevenir esse dano à fé católica, e também defender o rito, ameaçado de nova fragmentação, São Pio V ordenou que todas as Dioceses latinas utilizassem o Missal Romano tal qual ele reformara e codificara. Em suma, tratava-se do rito que nos veio de São Gregório Magno, acrescido dos elementos galicanos incorporados na época de Carlos Magno. Apenas os missais dos ritos e usos que tivessem mais de duzentos anos seriam permitidos junto da nova codificação pontifícia.

É por isso que sobreviveram, ao lado do rito romano, o mozárabe, o bracarense, o lionês e o ambrosiano, além das variações do rito romano adotadas por algumas Ordens religiosas, como os carmelitas, os dominicanos e os cartuxos.

Certas regiões da Inglaterra, pela falta de efetiva comunicação e pelo continuar da revolta do rei Henrique VIII, mantiveram os ritos celtas e o uso de Sarum, os quais formaram a base da futura liturgia da Comunhão Anglicana proposta por Thomas Cranmer no Livro de Oração Comum – Book of Common Prayer. O uso de Sarum também era usado pelos católicos no período entre o cisma anglicano, em 1530, e a publicação do Missal tridentino, em 1570. Na restauração católica da rainha Maria, mesmo após 1570, o Missal de Sarum continuou a ser utilizado pela dificuldade em se conseguir exemplares dos livros litúrgicos do rito romano seguido no Continente.

O que se percebe é que, realmente, a reforma de Paulo VI fez o rito ficar mais simples, e mais fiel à sua primitiva forma, configurando, desse modo, o Missal e os demais livros litúrgicos ao princípio que informa a liturgia romana: a nobre simplicidade.

Todavia, não se pode afirmar isso como se o rito tradicional, tal como codificado em Trento e em uso, ordinariamente, até 1970 (hoje, forma extraordinária), tivesse perdido a simplicidade, ou desobedecido ao princípio informador. Com efeito, o rito moderno é mais simples, torna mais claro o princípio da cultura romana, todavia, o rito tradicional, em que pese o acréscimo de cerimônias mais rebuscadas, estranhas, até, ao ethos romano primitivo, não perdeu a sua simplicidade. O rito romano moderno é mais simples, mas o tradicional, menos simples, ainda é, entretanto, (perdoem-me a repetição) "suficientemente simples".

Ademais, temos que entender que a cultura européia não era apenas a romana clássica, simples por natureza, mas uma amálgama de elementos célticos e bárbaros, cuja alma religiosa estava muito mais próxima dos orientais do que da România. Desse modo, a incorporação de elementos mais "esplendorosos", que sacrificaram certa simplicidade mais pura do rito primitivo, foi um processo natural, resultante também da incorporação, pelos romanos, das demais culturas européias que formaram a Cristandade.

O rito romano primitivo falava aos romanos. O rito romano tradicional, com os elementos gálicos, falava ao europeu (mistura de romano com celta e germânico). Portanto, falava a nós, que descendemos dessa cultura amalgamada e harmoniosamente composta.

Se o rito romano moderno pretende ser uma simples cópia do rito romano primitivo, em nome da pureza original, ele acaba falando só para os romanos imperiais, que não existem mais. Nós não somos romanos puros, mas romanos, celtas e germânicos. Portanto, o rito tradicional nos fala mais, digamos assim.

A nobre simplicidade mais pura não tem sentido para a nossa alma amalgamada. Essa nobre simplicidade precisa ser temperada com elementos mais "majestosos", como também a nossa austeridade romana é temperada pelas culturas célticas e barbáricas.

É por isso que se fala em uma "reforma da reforma" que mantenha a intenção do rito romano moderno (com suas excelentes simplificações em certos elementos acidentais: gradação mais simples das festas, rubricas cerimoniais menos rebuscadas, rito menos fechado, diminuição de oitavas, extinção, na Missa, da sobreposição de coletas; e também com seu resgate de elementos medievais que se perderam na composição dos Próprios gálico-romanos, como alguns Prefácios, algumas coletas presentes nos sacramentários Leonino, Gregoriano e Gelasiano, que não constavam da codificação de São Pio V), mas traga de volta, por outro lado, elementos "menos simples" (mas conforme o ethos não puramente romano de nossa cultura) que se foram incorporando, por influência gálica, de modo natural e orgânico, no rito: orações ao pé do altar, ofertório com ar mais sacrifical.

Aliás, se for para manter a simplicidade do rito romano primitivo, por que usar outras Orações Eucarísticas, além do Cânon Romano, que era o original? Não condeno as demais Orações Eucarísticas, e defendo que sua promulgação não só é lícita (pois foram dadas pelo Papa) como conveniente (dado que são belíssimas e, sobretudo a II, nos vem de São Justino e Santo Hipólito, testemunhas do rito romano anterior à própria reforma de São Gregório Magno), mas sua junção no novo Missal de Paulo VI desmente a própria "volta à pureza".

Bem, é com base nesse pensamento e nos princípios do rito romano que se pode pensar em uma eventual "reforma da reforma", que mantivesse o que de bom a reforma de Paulo VI fez (em nome da simplicidade: extinção da duplicação de ritos na Missa cantada, simplificação da gradação das festas, simplificação das regras para a Missa rezada de modo que possa ter trechos cantados, extinção da sobreposição de coletas, rubricas mais abertas, uso do incenso mais livre inclusive na Missa simples, diminuição do número de vigílias e oitavas, simplificação da Liturgia das Horas, extinção de certas cerimônias - beijo nos objetos quando o sacerdote os entrega ao acólito, por exemplo; em nome da antiguidade: procissão do ofertório, saudação da paz, preces dos fiéis; em nome da adaptação aos tempos atuais: lecionário dominical trienal e ferial bienal), mas resgatasse aquilo que, embora não tão simples (o que, num primeiro momento, se poderia opor como não sendo próprio do rito romano, mas que já vimos não ser verdade), foi amalgamado a ele de modo natural (orações ao pé do altar, ofertório mais sacrifical) e constava do rito até a reforma de Paulo VI, mas que infelizmente se perdeu. Além, é claro, de outras regras como a obrigatoriedade da celebração versus Deum e um uso mais generoso do latim e do canto gregoriano.

Não se trata de criar um terceiro rito, mas de incorporar, naturalmente, elementos do rito antigo ao rito moderno, e isso de modo a que, com o tempo, ambas as formas do rito romano não se distingam tanto externamente, ao menos não para um leigo "não iniciado".

Certas cerimônias que fazem parte de nossa tradição litúrgica podem ser mantidas sem previsão nas rubricas atuais, mas aí não seria uma mistura, e sim a preservação de gestos de devoção: abençoar a água que se misturará ao vinho, o modo de incensar o altar e as oblatas, os polegares unidos aos indicadores desde a consagração da hóstia até a purificação, a voz mais baixa (mas não "vox submissa", por causa da norma explícita da IGMR) e mais pausada na consagração, os modos de soar a campainha etc.

Uma dúvida de muitos: o padre está entrando em procissão, enquanto se canta o canto de entrada. Existe algum impedimento para que ele, por gosto pessoal e reta intenção de "solenizar" mais a missa, ao invés de simples genuflexão ao pé do altar, permaneça lá por alguns instantes, e recite em "secreta" parte ou toda a oração ao pé do altar do Rito Tridentino? Da mesma forma, ele não poderia "solenizar" mais o ofertório, se utilizando de gestos previstos nas rubricas apenas do Rito Tradicional?

Dizer as orações ao pé do altar de modo privado (mas não em vox secreta, pois isso requeriria mexer os lábios, ao menos) soa-me artificial, pois isso demoraria uns 2 minutos, no mínimo, além de duplicar o Confiteor, que será dito depois. Se ele quiser fazer as tais orações por devoção, o lugar correto, no rito moderno, é na sacristia. Até porque, na Idade Média, era na sacristia que se as rezava, sendo incorporada ao rito da Missa só depois, com São Gregório Magno. Ora, se a reforma de Paulo VI pretende ser um resgate do uso primitivo do rito romano, as orações ao pé do altar devem ser recitadas é no seu lugar igualmente primitivo: na sacristia.

Quanto ao ofertório, não se trata de gestos cerimoniais diferentes apenas, mas de textos distintos, o que implica em tumulto do rito.

Uma coisa é conservar certos detalhes não mais previstos, outra é trazer verdadeiras cerimônias do rito antigo para dentro do rito novo.

Na verdade, não se trata nem de solenizar mais. O fato é que as rubricas de 1969/2002 deixam algumas cerimônias sem descrição precisa de modo proposital: pensa-se que o sacerdote, ao executá-las, irá fazê-lo com base na tradição litúrgica anterior. Não descreve com precisão porque na mente do legislador os padres iriam, por si só, manter os gestos.

Na prática sabemos que não é bem assim, e também, pela falta de norma preceptiva escrita, nem mesmo estão constrangidos a isso. Mas o sentido de certas omissões é esse.

Tanto é assim que o Cerimonial dos Bispos no rito moderno, cuja edição é de 1985, se não me engano, traz, em suas notas de rodapé, citações do Cerimonial dos Bispos do rito tradicional, como referência para certos gestos. Está claro, assim, a continuidade litúrgica.

Agora, transplantar cerimônias inteiras de uma forma para dentro de outra me parece artificial e ilícito.

O Compêndio do Catecismo da Igreja nos apêndices, constam algumas orações de origem oriental, que parecem se aplicar à Santa Missa. São elas:

Oação do Incenso (Tradição Copta)

Ó Rei da paz, dai-nos vossa paz e perdoai os nossos pecados. Afastai os inimigos da Igreja e protegei-a, para que não desfaleça. O Emanuel nosso Deus está no meio de nós, na glória do Pai e do Espírito Santo. Abençoai e purificai o nosso coração e curai as enfermidades da alma e do corpo. Nós vos adoramos, ó Cristo, com vosso Pai bondoso e o Espírito Santo, porque viestes e nos salvastes.

Oração de "Despedida do Altar" - antes de sair da Igreja depois da Liturgia (tradição Siro-Maronita)

Fica em paz, ó Altar de Deus. A oblação que de ti tomei seja para remissão dos débitos e dos pecados, e me alcance chegar diante do tribunal de Cristo sem condenação e sem confusão. Não sei se me será dado voltar e oferecer sobre ti outro Sacrifício. Protegei-me, Senhor, e conservai a vossa santa Igreja como caminho de verdade e de salvação. Amém.

Oração pelos Defuntos (Tradição Bizantina)

Deus dos espíritos e de toda carne, que esmagastes a morte, aniquilastes o demônio e destes a vida ao vosso mundo; vós mesmo, ó Senhor, dai à alma do vosso servo N. defunto o repouso num lugar luminoso, num lugar verdejante, num lugar de refrigério, no qual estejam distantes o sofrimento, a dor e o lamento. Como Deus bondoso e benigno, perdoai toda culpa por ele cometida com palavras, com obras e com a mente; porque não há homem que viva e não peque; pois somente vós sois sem pecado, e a vossa justiça é justiça nos séculos e a vossa palavra é verdade. Porque sois a ressurreição, a vida e o repouso do vosso servo N. defunto, ó Cristo, nosso Deus, nós vos rendemos glória, e ao vosso ingênito Pai, com o santíssimo bondoso e vivificante Espírito, agora e para sempre, pelos séculos dos séculos.

Repouse em paz. Amém.

A volta de alguns elementos que constavam do rito romano primitivo e foram deixadas de lado após a Idade Média é válida. A oração dos fiéis, a procissão do ofertório, a pax dada aos fiéis também. Mas não precisavam jogar pela janela coisas que, embora não constassem do rito primitivo, foram a ele se incorporando de modo natural: as orações ao pé do altar, o último Evangelho, o ofertório tradicional.

De outra sorte, a própria reforma não respeitou o desenvolvimento orgânico ao impor uma revisão radical do calendário, por exemplo. Trazer elementos de volta é uma coisa. Sepultar outros ou mudá-los radicalmente é outra!

Citações extraídas cmm 55975

 

©2009 Tradição em foco com Roma | "A verdade é definida como a conformidade da coisa com a inteligência" Doctor Angelicus Tomás de Aquino