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O vocábulo que faz doer o ouvido: presidenta


A mutação da língua é uma força da natureza que não pode ser impedida.

Com presidenta eu até consigo viver, como é que ficam as políticas?

Sra. Katia Abreu, por exemplo, é uma política ou um político?

A tendência popular é, de fato, feminizar os substantivos provenientes do particípio presente latino que não variava em gênero: "amans","amantis" (amante,que ama); "legens", "legentis" (lente, que lê); "audiens", "audientis" (ouvinte, que ouve).

Vejamos o caso de "papisa".

É um feminino que existe na teoria gramatical, porém, como nunca houve uma mulher exercendo a função de papa, não se realiza na língua cotidiana.

Mas ele está ao nosso dispor e, se um dia houver uma mulher na liderança da Igreja Católica, certamente vamos chamá-la de "a papisa".

O feminino "presidenta" está mais ou menos nesse estado de latência, dependendo, para se popularizar, de maior presença das mulheres no cargo de presidente.

Não aceitar uma palavra, porque ela não está no dicionário - embora isso não queira dizer que ela não existe -, porque ela não obedece às regras morfológicas da língua, porque ela não obedece à tradição da língua e porque ele não teve aceitação nos círculos cultos da sociedade seriam até argumentos.

Poderiam ser citados outros argumentos aceitáveis. No entanto, incluir entre eles a questão de soar estranho é extremamente subjetivo, mesmo porque há diversas palavras, expressões e estruturas gramaticais suportamente capazes de causar estranhesas que, no entanto, fazem parte da língua padrão.

Aplicar uma espécie de paralelismo gramatical também não é bom critério. Isto é: não se pode condenar o par "presidente" X "presidenta", porque não há o par "estudante" X "estudanta" etc.

Na União Européia "presidenta" seria considerada uma criação desnecessária haja vista que o termo é contra as mais novas tendências do politicamente correto.

Na Alemanha, onde há tradicionalmente palavras masculinas e femininas para as mais diversas profissões, já se trabalha na alteração de todos esses termos para poder adaptá-los a alguma legislação futura e vindoura da União Européia que vai regulamentar que uma designação para uma profissão não pode revelar o gênero biológico de quem prática essa profissão.

Além do Bechara - por mais contrário mas respeitoso que eu seja em relação a ele -, a ABL não tem gente suficiente que entenda de língua (por mais estranho que isso possa parecer). Para uma Academia poder fazer esse serviço, seria necessário que lá houvesse um forte grupo de cientistas da língua/linguagem, mas como esperar isso se na ABL até mesmo a importância literária de muitos é duvidosa!

As reformas ortográficas são politicagem para mim, pelo menos no Brasil.

Mas em questão de regulamentar uma língua em gramáticas, dicionários e afins, não acho que esta deixa de ser pública. Simplesmente porque a sociedade é cheia de regras, que querendo ou não, o individuo cumpre para organização de um povo. As leis estão nas nossas vidas para isso (falar quem é inocente e culpado). Daí, já nascemos descriminando os outros, como não descriminar linguísticamente? Não se esqueça que tivemos escravos, coronéis, etc.

O grande problema da regulamentação da língua é que no Brasil não temos uma Academia Brasileira de Letras que a regulamentarize adequadamente ou a atualize de vez em quando para que as gramáticas não fiquem defassadas (com regras que não fazem sentidos). Falo isso porque se comparo com a Academia Espanhola, eles fazem muito e bem feito, para atualizar o espanhol, mostrar as variantes e respeitar cada uma.

Um pequeno exemplo:

Vou a São Paulo ou Vou para São Paulo? Qual é a diferença das duas? A gramática explica. Mas se falo: vou à missa ou vou para a missa, podemos continuar dizendo que tem a mesma diferença? Eu particularmente não vou â missa para passar mais de uma hora, então não vejo diferença nas duas. O que faz a Academina Brasileira de Letras para atualizar ou estudar mais este fenômeno? Para mim, nada.

Gênero substantivo

"Se tratando da flexão de gênero do substantivo, o que diferencia Bechara de outros gramáticos é o fato dele ressaltar a inconsistência do gênero gramatical, segundo ele a distinção do gênero nos substantivos não tem fundamento racional, exceto a tradição fixada pelo uso e pela norma. Não tem lógica lápis e papel serem masculinos enquanto caneta e folha serem femininos".

Muitos não entendem esta afirmação do Bechara. Não tem lógica lápis e papel serem masculinos enquanto caneta e folha serem femininos".O que define o gênero não são os artigos?

Pode se ter pronomes (este lápis) ou adjetivos (lápis preto), por exemplo, sem necessariamente ter artigos. Em russo ou em latim, por exemplo, não existem artigos e ainda assim os substantivos têm gênero.

Eu entendo que o que o Bechara quer dizer é que "lápis" e "papel" poderiam ser femininos e ainda assim terem o mesmo significado. Ao contrário de certos outros autores, que por vezes afirmam que um substantivo deve ter o mesmo gênero de seus sinônimos. Eu me lembro de uma afirmação num livro do Sacconi de que a palavra "xerox" deve ser feminina porque "fotocópia" também é feminina.

o artigo não define o gênero, mas saber o gênero do artigo (melhor dizendo: o gênero de qualquer determinante que sofre flexão de gênero) ajuda a determinar o gênero do substantivo, o que só funciona em sua plenitude para os falantes nativos cultos da língua portuguesa.

Embora em alguns substantivos o gênero seja mais ou menos previsível (o homem, a mulher, etc.), a análise do conjunto dos substantivos da LP nos mostra facilmente que o gênero de alguns mudam com o tempo (o Bechara fornece exemplos), que há vacilação quanto ao gênero, que há alguma tendência em criar novos pares de flexão (ídolo-ídola; membro-membra, etc.).

A ideia é a mesma: "o lápis" / "a caneta"; "o papel" / "a folha". O que o Bechara quer dizer é que mesmo palavras sinônimas ou muito próximas de significado podem ter gêneros diferentes.

Embora o gênero dos substantivos seja arbitrário (exceto por uma ou outra possibilidade de sistematização) parece haver forte tendência de atribuir às palavras terminadas em "o" o gênero masculino e, principalmente, às terminadas em "a" o gênero feminino, além da tendência, como mencionei acima, de criar novos pares: crianço-criança; ídolo-ídola; membro-membra; marido-marida, etc.

A lógica é uma disciplina universal, como a matemática, que não está vinculada a nenhuma lingua natural. No entanto, quando pessoas aprendem línguas estrangeiras, observa-se exatamente isso que o Bechara quis dizer: as pessoas atribuem o gênero errado às palavras, pois para aprender o gênero de uma palavra numa língua estrangeira não existe nenhum caminho lógico.

É só decoreba. O português até que facilita, pois palavras em "a" costumam ser femininas, e palavras em "o", masculinas. Então, "o" problema fica mais fácil. Algumas palavras tem um gênero oscilante. A palavra "gente", oficialmente feminina, pode ser usada também como masculino em alguns contextos. Parece que em frases como "a gente está casado" o masculino genérico (mais do que uma pessoa) prevalece sobre o feminino da palavra. Aliás, em algumas línguas tem mais do que dois gêneros. Em latim e em alemão tem, por exemplo, três gêneros.

A tendência praticamente geral é colocar masculino nas palavras em -o e feminino nas palavras em -a.


Existem apenas duas palavras portuguesas que são femininas terminadas em -o: "tribo" e "libido". Há outras que são, na verdade, reduções de palavras mais longas ("foto" de "fotografia", "moto" de "motocicleta" etc.) e palavras terminadas em ditongo, que ortograficamente terminam em -o (como as palavras formadas pelo sufixo -ção).

Já palavras masculinas terminadas em -a há várias, mas de fato essa tendência de relacionar o gênero à terminação prevalece.

Sobre a tendência de criar novos pares, eu gosto de indivíduo-indivídua também!

Enfim, na minha opinião isso reflete a força da analogia, que, como dizia Saussure, é a força por trás de todas as criações na linguagem. E a analogia reflete a busca pela generalização e regularização, importantes para a cognição humana de maneira geral.

"grama", "telefonema", etc. são excelentes exemplos de aplicação da "regra por analogia". Em relação a "grama" (o grama), a gramática normativa ainda não se rendeu, mas é quase generalizado, no Brasil, o uso dessa palavra com o gênero feminino (a grama).

Há os cursos de Letras que servem apenas como uma continuação das aulas de LP dos ensinos fundamental ou médio (às vezes por culpa do professor e do sistema, às vezes por culpa dos próprios alunos que não querem raciocinar. Mas há os cursos de Letras voltados para a formação completa (inclusive linguística) que os professores de LP precisam ter.

Precisamos sempre questionar a NGB -- ela foi elaborada em 1958, quando os conhecimentos linguísticos no nível que temos de hoje não existiam -- e entender que ela não foi feita para ser uma manual rígido.

O problema é que como professores ficamos às vezes em uma saia justa: se a seguimos à risca, não descrevemos a língua com mais fidelidade (quando temos de descrevê-la); se a atualizamos e a corrigimos, corremos o risco de sermos criticados pelo sistema.

Mais importante do que afirmar se é certo ou aceitável é entender os motivos que levam os falantes a usarem essa forma.

Mas de fato, a gramática normativa muito provavelmente vai dizer que é incorreto.

PARA CITAR ESTE ARTIGO:

O vocábulo que faz doer o ouvido: presidenta David A. Conceição, graduando de Letras Português/Latim da Universidade Federal do Rio de Janeiro, agosto de 2012, blogue Tradição em Foco com Roma.



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