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Como combater o escrúpulo


O escrúpulo é uma doença física e moral, que produz uma espécie de loucura na consciência e lhe faz recear, por motivos fúteis, ter ofendido a Deus. Não é enfermidade exclusiva dos principiantes; tanto se encontra neles como nas almas mais adiantadas. Importa, pois, dizer alguma coisa acerca dela, expondo: 1.0 a sua natureza; 2.° o seu objeto; 3.0 os seus inconvenientes e vantagens; 4.0 os seus remédios.
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I. Natureza do escrúpulo

935. A palavra escrúpulo (do latim scrupulus, pedrinha) designou durante muito tempo um peso minúsculo, que não fazia inclinar senão as balanças mais sensíveis. Em sentido moral, designa uma razão insignificante, de que somente se preocupam as consciências mais delicadas. Daqui passou a exprimir a inquietação excessiva, que experimentam certas consciências, pelos motivos mais fúteis, de haverem ofendido a Deus. Para melhor lhe conhecermos a natureza, expliquemos a sua proveniência, os seus graus, a distinção entre ele e a consciência delicada.
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936. 1º Proveniência. O escrúpulo provém umas vezes duma causa puramente natural, outras duma intervenção sobrenatural.

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a) Sob o aspecto natural, é muitas vezes o escrúpulo uma doença física e moral.

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1) A doença física, que contribui para produzir esta desordem, é uma espécie de depressão nervosa que torna mais difícil a acertada apreciação das coisas morais, e tende a produzir, sem motivo sério, o pensamento obsessor de que se cometeu um pecado.
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2) Mas há também causas morais, que produzem o mesmo resultado: um espírito meticuloso, que se afoga nas mais ridículas insignificâncias, que desejaria ter certeza absoluta em todas as coisas; um espírito mal esclarecido, que representa a Deus como um juiz não somente severo, mas implacável; que, nos atos humanos, confunde a impressão com o consentimento e imagina haver pecado, porque a fantasia foi longa e fortemente impressionada; um espírito obstinado, que prefere o seu próprio juízo ao do confessor, precisamente porque se deixa guiar pelas suas impressões muito mais que pela razão.
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Quando estas duas causas, física e moral, se encontram reunidas, é muito mais profundo o mal, muito mais difícil de curar.
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937. b) O escrúpulo pode também provir duma intervenção preternatural de Deus ou do demônio.
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1) Deus permite essas obsessões, umas vezes para nos castigar, sobretudo da soberba, dos movimentos de vã complacência; outras, para nos provar, para nos fazer expiar as faltas passadas, para nos desapegar das consolações espirituais e nos levar a um grau mais elevado de santidade; é o que sucede particularmente às almas que Deus quer dispor para a contemplação, como diremos, ao tratar da via unitiva.
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2) O demônio vem também por vezes enxertar a sua ação sobre uma predisposição mórbida do nosso sistema nervoso, para nos lançar a perturbação na alma: persuade-nos que estamos em pecado mortal, para nos impedir de comungar, ou para nos embaraçar no cumprimento dos nossos deveres de estado; sobretudo porfia enganar-nos sobre a gravidade desta ou daquela ação, para nos fazer pecar formalmente, ainda quando não há matéria de pecado, mormente de pecado grave. 


938. 2.° Graus. Há, evidentemente, muitos graus no escrúpulo:
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a) ao princípio não é mais que uma consciência meticulosa, excessivamente tímida, que vê pecado onde o não há;
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b) depois, são escrúpulos passageiros que se expõem ao diretor, aceitando, porém, imediatamente a solução que ele dá;
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c) enfim, o escrúpulo propriamente dito, tenaz acompanhado de obstinação.
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939. 3.° Diferença entre o escrúpulo e a consciência delicada. Importa distinguir bem a consciência escrupulosa, da consciência delicada ou timorata.
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a) O ponto de partida não é o mesmo: a consciência delicado ama a Deus com fervor e, para Lhe agradar, quer evitar as menores faltas, as menores imperfeições voluntárias; o escrupuloso é guiado por um certo egoísmo, que lhe faz desejar com excessiva ansiedade a segura de estar em graça.
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b) A consciência delicada, por ter horror ao pecado e conhecer a própria fraqueza, sente um temor fundado, mas não perturbador, de desagradar a Deus; o escrupuloso alimenta receios fúteis de pecar em todas as circunstâncias.
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c) A consciência timorata sabe manter a distinção entre o pecado mortal e o venial e, em caso de dúvida, submete-se imediatamente ao juízo do seu diretor; o escrupuloso discute asperamente com ele e não se sujeita senão com dificuldade às suas decisões.
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Assim como é necessário evitar com todo o cuidado o escrúpulo, assim não há nada mais precioso que a consciência delicada.

II. Objeto do escrúpulo

940. 1º Às vezes é universal o escrúpulo e recai sobre toda a sorte de objetos; antes da ação, aumenta desmesuradamente os perigos que se podem encontrar nesta ou naquela ocasião, aliás bem inocente; depois da ação, povoa a alma de inquietações mal fundadas e facilmente persuade a consciência que caiu em culpa grave.

941. 2.° As mais das vezes, porém, refere-se a certo número de matérias particulares:

a) Às confissões passadas: ainda depois de muitas confissões gerais, não fica satisfeito o escrupuloso, com medo de não haver acusando tudo, de não ter tido dor, querendo sempre voltar ao princípio;

b) Aos maus pensamentos: a imaginação está cheia de imagens perigosas ou obscenas, e, como produzem certa impressão, receia haver consentido, tem até certeza, apesar de tudo aquilo lhe desagradar infinitamente;

c) Aos pensamentos de blasfêmia: porque estas idéias lhe perpassam pelo espírito, fica persuadido que houve consentimento, não obstante o horror que lhe causam;

d) À caridade; ouviu murmurações, sem protestar energicamente; faltou ao dever da correção fraterna por mero respeito humano, escandalizou o próximo com palavras indiscretas, viu um tumulto e não foi observar se não haveria qualquer acidente de alguém que necessitasse da intervenção dum padre, para lhe dar a absolvição, e em tudo isto vê gravíssimos pecados mortais;

e) Às espécies consagradas, que teme haver tocado indevidamente o quer purificar as mãos, os vestidos;

f) Às palavras da consagração; à recitação integral do ofício divino, etc.

III. Inconvenientes e utilidades do escrúpulo


942. 1º Quando alguém tem a desdita de se deixar dominar pelos escrúpulos, são deploráveis os efeitos que eles produzem no corpo e na alma:

a) Enfraquecem gradualmente e desequilibram o sistema nervoso: os temores, as angústias incessantes exercem uma ação deprimente sobre a saúde do corpo; podem converter-se numa verdadeira obsessão e produzir uma espécie de monoideísmo, muito próximo da loucura.

b) Cegam o espírito e falseiam o juízo: perde-se pouco a pouco, a faculdade de discernir o que é pecado do que o não é, o que é grave do que é leve; torna-se a alma navio sem leme.

c) A indevoção do coração é muitas vezes conseqüência do escrúpulo; à força de viver na agitação e confusão torna-se o escrupuloso medonhamente egoísta, entra a desconfiar de toda a gente, até de Deus, que começa a olhar como demasiado severo; queixa-se de que o Senhor nos deixe nesse infeliz estado, acusa-o injustamente: é manifesto que a verdadeira devoção, em tal estado, é impossível.

d) Vêm por fim os desfalecimentos e as quedas.

1) O escrupuloso gasta as energias em esforços inúteis sobre ninharias, e depois já não tem força para lutar em pontos de grande importância, porque é impossível fixar a atenção com toda a intensidade, em toda a linha. Daqui surpresas, desfalecimentos e às vezes faltas graves.

2) E depois, é natural buscar alívio às mágoas; e, como se não encontra na piedade, vai-se procurar noutra parte, nas leituras, nas amizades perigosas, o que tantas vezes é ocasião de faltas deploráveis, que lançam a alma no mais profundo desalento.

943. 2º Quem souber, porém, aceitar os escrúpulos como provação, e corrigir-se deles pouco a pouco, com o auxílio dum prudente diretor, encontrará neles preciosas utilidades.

a) Servem para purificar a alma, porque esta se aplica a evitar menores pecados, as mais pequeninas imperfeições voluntárias, e assim se adquire uma grande pureza de coração.
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b) Ajudam-nos a praticar a humildade e a obediência, obrigando-nos a submeter as nossas dúvidas ao diretor espiritual com toda a simplicidade e a seguir os seus avisos com plena docilidade não só da vontade senão também do juízo.
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c) Contribuem para nos aperfeiçoar na pureza de intenção, desapegando-nos das consolações espirituais e unindo-nos unicamente a Deus, que amamos tanto mais quanto mais Ele nos prova.
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IV Remédios do escrúpulo



944. É logo desde o princípio que se deve combater o escrúpulo, antes que ele tenha lançado profundas raízes na alma. Ora o maior, ou, a bem dizer, o único remédio é a obediência plena e absoluta a um diretor experimentado. Como a luz da consciência se ofuscou, é mister recorrer a outra luz. Um escrupuloso é um navio sem leme nem bússola; é necessário, pois, tomá-lo a reboque. Deve, por conseguinte, o diretor, ganhar a confiança do escrupuloso e saber exercer a sua autoridade sobre ele para o curar.
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945. Antes de tudo, é preciso ganhar-lhe a confiança, já que facilmente se obedece àqueles em quem se depositou confiança. Mas nem sempre é fácil consegui-lo. É certo que os escrupulosos sentem instintivamente necessidade dum guia; alguns, porém, não ousam entregar-se-lhe completamente; querem, sim, consultá-lo, mas discutir também as razões. Ora, com escrupulosos não se discute; fala-se-lhes com autoridade, dizendo-lhes com toda a clareza o que devem fazer.
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Para inspirar esta confiança, deve o diretor merecê-la pela sua competência e dedicação.
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a) Deixará, primeiro, falar o penitente, intercalando apenas algumas observações, para mostrar que compreendeu tudo perfeitamente; fará em seguida algumas perguntas, a que o escrupuloso não terá mais que responder sim ou não, e dirigirá assim por si mesmo o exame metódico daquela consciência. Depois acrescentará: compreendo o seu caso, o seu sofrimento tem estes, e estes caracteres ... - É já um alívio imenso para o penitente, ver que é bem compreendido, e às vezes é o bastante para que ele deposite no diretor absoluta confiança.
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b) À competência é necessário juntar a dedicação. Mostrar-se-á, pois, o diretor paciente, escutando, sem pestanejar, as longas explicações do escrupuloso, pelo menos ao princípio; bondoso, interessando-se por esta alma e manifestando o desejo e a esperança de a curar; manso, não falando em tom severo e áspero, mas com bondade, ainda quando se veja forçado a empregar linguagem imperativa. Nada ganha mais a confiança do que este misto de firmeza e bondade.
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946. 1º Uma vez conquistada a confiança, comece-se a exercer a autoridade, exigindo obediência. Dir-se-á ao escrupuloso; se se quer curar, tem que obedecer às cegas; obedecendo, está completamente seguro, ainda que o diretor se engane, porque Deus neste mundo não lhe exige senão uma coisa: obedecer. Isto é tão verdade que, se não está resolvido a obedecer, não tem remédio senão procurar outro diretor: só a obediência cega o curará, mas esta curá-lo-á certamente.
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a) Ao dar as suas ordens, deve o diretor falar decidido, Com clareza e precisão, evitando qualquer equívoco: de forma categórica, não no condicional: se isto o inquieta, não o faça; mas de modo absoluto: faça isto, evite aquilo, despreze tal tentação.
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b) Quase nunca se devem motivar as decisões, sobretudo ao princípio; mais tarde, quando o escrupuloso puder compreender e sentir a força das razões, dar-se-ão brevemente, para lhe ir formando pouco a pouco a consciência. Mas sobretudo não se permita a mínima discussão sobre a substância da decisão: se naquele momento se opuser qualquer obstáculo à sua execução, tome-se em conta; mas a decisão de ficar de pé.
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c) Desdizer-se nunca; antes da decisão, reflete-se bem, e não se dão ordens que não se possam manter; dada, porém, a ordem, não se revoga, enquanto não houver um fato novo que torne a mudança necessária.
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d) Para haver segurança de que a ordem é bem compreendida, manda-se repetir, e então nada mais que fazê-la executar. É difícil, visto o escrupuloso recuar muitas vezes diante da execução, como o condenado diante do suplício. Mas declara-se-lhe redondamente que ele terá de dar conta de si; se não fez o que se lhe disse, não se lhe dará atenção, enquanto o não houver executado. É, pois, conveniente repetir várias vezes a mesma prescrição, até ser bem executada; e faz-se tudo isso, sem impaciência, mas com firmeza crescente, até que o escrupuloso acabe por obedecer.
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947. 2º Quando parecer oportuno, inculque o diretor o princípio geral que permitirá ao escrupuloso desprezar todas as dúvidas; se for necessário, ditar-lho-á por esta forma ou qualquer outra análoga: «Para mim, em ponto de obrigação de consciência, só tem peso a evidência, isto é, uma certeza que exclua qualquer dúvida, uma certeza tranqüila e plena, tão clara como dois e dois são quatro; não posso, pois, cometer pecado mortal nem venial, a não ser que tenha certeza absoluta de que a ação que vou praticar é para mim proibida sob pena de pecado mortal ou venial, e sabendo-o bem, queira ainda assim praticá-la, apesar de tudo. Não darei, pois, a mínima atenção às propriedades por mais fortes que sejam, não me julgarei ligado senão pela evidência clara e certa; fora disso, não há pecado». Quando o escrupuloso se apresentar, afirmando que cometeu uma falta venial ou mortal, dir-lhe-á o confessor: Pode afirmar, com juramento, que viu claramente, antes do ato, que ia cometer pecado, e que, tendo-se visto com toda a evidência, lhe dou pleno consentimento? - Esta pergunta dará mais precisão à regra e fála-á compreender melhor.



948. 3º É necessário, enfim, aplicar este princípio geral às dificuldades particulares que se apresentam.
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a) Relativamente às confissões gerais, depois de haver permitido uma, não mais consentirá que o penitente volte a repetir nada, a não ser que haja evidência sobre estes dois pontos:
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1) Um pecado mortal certamente cometido, e;
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2) A certeza de que esse pecado nunca foi acusado em nenhuma confissão válida. - Algum tempo depois, ordenará até o confessor que nunca mais se volte sobre o passado; se algum pecado tivesse sido omitido, está perdoado com os outros.
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b) No que diz respeito aos pecados internos de pensamentos e desejos, dar-se-á esta regra: durante a crise, desviar a atenção, pensando noutra coisa; após a crise, nada de examinar-se, para ver se houve pecado (o que poderia renovar a tentação), mas continuar o seu caminho, cumprindo os deveres do próprio estado, e comungar, enquanto não tiver evidência de haver dado pleno consentimento (nº 909).
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949. c) A comunhão é muitas vezes uma tortura para os escrupulosos: receiam não estar em graça ou em jejum. Ora:
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1) O receio de não estarem em graça prova que não têm certeza disso; logo, devem comungar, e a comunhão lhes restituirá a graça, caso a houvessem perdido;
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2) O jejum eucarístico não deve impedir os escrupulosos de comungar, senão quando estiverem absolutamente certos de o haverem quebrado.
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d) A confissão é para eles ainda maior tortura; importa, pois, simplificar-lha. Dir-se-lhe-á, pois:
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1) Não há obrigação senão de acusar os pecados certamente mortais;
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2) Quanto às faltas veniais, não mencione senão as que lhe vierem à memória após cinco minutos de exame;
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3) Quanto à contrição, consagre sete minutos a pedi-la a Deus e a excitar-se a ela, e tê-la-á. - Mas eu não a sinto. - Nem é necessário; a contrição é um ato da vontade, que não tem que ver com a sensibilidade. - Em certos casos até, quando o escrúpulo é muito intenso, prescrever-se-á aos penitentes que se contentem com esta acusação genérica; acuso-me de todos os pecados cometidos desde a minha última confissão e de todos os da minha vida passada.
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950. 4º Resposta às dificuldades. Às vezes dirá o penitente. – Vossa Reverendíssima trata-me como escrupuloso; ora eu não o sou. – Responder-se-á: Não é ao penitente que compete julgar, é ao confessor. Está bem certo de que não é escrupuloso? Depois das suas confissões fíca em paz, tranqüilo, como toda a gente? Não tem porventura dúvida, ansiedades que a maior parte da gente não tem? Não é, pois, normal esse seu estado de alma; essa espécie de desequilíbrio, sob o aspecto físico e moral, em que se encontra, justifica um tratamento particular. Obedeça, então, sem discutir, se quer sarar; aliás, não pode deixar de se ir agravando o seu estado.
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Por estes meios e outros análogos é que se acaba, com a graça de Deus, por curar esta dolorosa enfermidade do escrúpulo.
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PARA CITAR ESTE ARTIGO:
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A graça de Deus se oculta numa Missa porcamente celebrada?

Adolph Tanquerey, Teologia Ascética e Mística, nº 934-950 transcrito por David A. Conceição 02/2015 Tradição em Foco com Roma.

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CRÍTICAS E CORREÇÕES SÃO BEM-VINDAS: 

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