Há uma música protestante que é cantada pelos católicos, em que se diz: "Quão grande és tu! Quão grande és tu!" e há também outro cântico de origem protestante que diz "Tu és fiel, Senhor".
Com base nestes e outros cânticos, como conciliar isso com a tradição da oração católica, que faz referência a Deus utilizando o plural majestático?
Não parece que o uso do plural majestático seja tradição católica, mas tradição católica no Brasil e Portugal. Em latim, utiliza-se o singular, mesmo na liturgia.
Embora isso, sempre usamos o plural mesmo em minhas preces privadas.
Não vejo qualquer problema com a segunda pessoa, seja no singular ou plural, não obstante eu preferir usar "Vós" em referência a Deus (tanto que meu Confissões tem tradução que a privilegia em detrimento a outras traduções que usam "Tu").
Vejo reverência no uso de ambos os termos. Vale lembrar que aqui no Brasil, a pessoa do "tu" foi substituída por uma forma peculiar: "você", de uso mais informal.
Não só quão grande és Tu, usa a segunda pessoa do singular, mas outras melodias como "Tu és, Senhor, o meu Pastor..." ou ainda "Tu és minha vida, outro Deus não há...".
Mas não seria, de algum modo, rebaixar Deus, uma vez que não podemos chamar uma autoridade de "tu" ou de "você"?
Por exemplo, ninguém chama um juiz de "tu" ou "você", ou o presidente da República, ou o Papa. Mas, e Deus, que é maior do que todos eles?
Não considero assim.
E um juiz também não é chamado de Vós, mas pelo pronome de tratamento que lhe cabe. O mesmo para o Papa.
E aqui no Rio, onde "tu" não é sequer usado a não ser erroneamente em gírias, utilizar a segunda pessoa é até reverente.
"Dominus vobiscum..."
Na Ave-Maria, em latim, o pronome aí é vós?
O uso aí é "vós", mas é uma frase do padre aos fiéis. Ora, os fiéis são numerosos, e, portanto, se usa o plural. Não é plural majestático, mas plural comum mesmo.
Já quando se fala com Deus e com os santos, quando nos dirigimos a eles em latim, usamos o "tu", singular: "Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum".
Outros exemplos: "tu, qui vivis et regnas in saecula saeculorum"; "laus tibi, Christe", "adveniat regnum tuum, fiat voluntas tua" (essa é do Pai Nosso!!!!), etc
Deus é Senhor, mas é também Pai. Na linguagem litúrgica e formal, cabem tanto o vós como o tu.
Com base nestes e outros cânticos, como conciliar isso com a tradição da oração católica, que faz referência a Deus utilizando o plural majestático?
Não parece que o uso do plural majestático seja tradição católica, mas tradição católica no Brasil e Portugal. Em latim, utiliza-se o singular, mesmo na liturgia.
Embora isso, sempre usamos o plural mesmo em minhas preces privadas.
Não vejo qualquer problema com a segunda pessoa, seja no singular ou plural, não obstante eu preferir usar "Vós" em referência a Deus (tanto que meu Confissões tem tradução que a privilegia em detrimento a outras traduções que usam "Tu").
Vejo reverência no uso de ambos os termos. Vale lembrar que aqui no Brasil, a pessoa do "tu" foi substituída por uma forma peculiar: "você", de uso mais informal.
Não só quão grande és Tu, usa a segunda pessoa do singular, mas outras melodias como "Tu és, Senhor, o meu Pastor..." ou ainda "Tu és minha vida, outro Deus não há...".
Mas não seria, de algum modo, rebaixar Deus, uma vez que não podemos chamar uma autoridade de "tu" ou de "você"?
Por exemplo, ninguém chama um juiz de "tu" ou "você", ou o presidente da República, ou o Papa. Mas, e Deus, que é maior do que todos eles?
Não considero assim.
E um juiz também não é chamado de Vós, mas pelo pronome de tratamento que lhe cabe. O mesmo para o Papa.
E aqui no Rio, onde "tu" não é sequer usado a não ser erroneamente em gírias, utilizar a segunda pessoa é até reverente.
"Dominus vobiscum..."
Na Ave-Maria, em latim, o pronome aí é vós?
O uso aí é "vós", mas é uma frase do padre aos fiéis. Ora, os fiéis são numerosos, e, portanto, se usa o plural. Não é plural majestático, mas plural comum mesmo.
Já quando se fala com Deus e com os santos, quando nos dirigimos a eles em latim, usamos o "tu", singular: "Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum".
Outros exemplos: "tu, qui vivis et regnas in saecula saeculorum"; "laus tibi, Christe", "adveniat regnum tuum, fiat voluntas tua" (essa é do Pai Nosso!!!!), etc
Deus é Senhor, mas é também Pai. Na linguagem litúrgica e formal, cabem tanto o vós como o tu.
Já na oração pessoal, eu uso mesmo é o você, e não penso que seja irreverência.
Aliás, aprendi de boa fonte. Como diz São Josemaria em Caminho:
Perde o medo de chamar o Senhor pelo seu nome - Jesus - e de Lhe dizer que O amas.
Na Bíblia da editora Ave Maria há várias passagens, tanto no Antigo quanto no Novo testamento, em que Deus é chamado de "tu".
(Apocalipse 4, 11)
Tu és digno Senhor, nosso Deus, de receber a honra, a glória e a majestade, porque criaste todas as coisas, e por tua vontade é que existem e foram criadas.
(Apocalipse 16,5)
Ouvi, então, o anjo das águas dizer: Tu és justo, tu que és e que eras o Santo, que assim julgas.
(São João 11,27)
Respondeu ela: Sim, Senhor. Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que devia vir ao mundo.
(São João 1,49)
Falou-lhe Natanael: Mestre, tu és o Filho de Deus, tu és o rei de Israel.
(Ezequiel 33,32)
Tu és para eles como um cantor romântico, dotado de bela voz, que toca bem o seu instrumento; escutam o que dizes, porém não o põem em prática.
(Gênesis 23,6)
“Ouve-nos, meu Senhor: Tu és um príncipe de Deus no meio de nós. Sepulta tua defunta no mais belo de nossos sepulcros. Ninguém de nós te recusará o seu túmulo para aí sepultar tua defunta.”
Em inglês, Deus é referido como "thou", que é um "tu" bem diferente do "you" que se usa geralmente.
Nesse sentido o inglês é curioso. Tanto o "thou" quanto o "ye" são formas arcaicas para se dirigir a uma pessoa e, como caíram em desuso, acabaram ganhando um ar solene. Até onde eu sei, em inglês não existe uma expressão equivalente ao nosso "o senhor", "a senhora" para ser usado em expressões como "o senhor gostaria de ajuda para atravessar a rua?" ("sir" e "madam" são usados apenas como vocativos), então acaba-se tratando até as pessoas mais velhas com o "you".
Em latim, usa-se o "tu". Mas estou me referindo ao uso em português mesmo.
Não é toda língua que dispõe de um plural majestático. Essa é a razão do "tu" aparecer nas nossas traduções da Bíblia. Já, em inglês, Deus é referido como "thou", que é um "tu" bem diferente do "you" que se usa geralmente.
Em nossa língua, o "tu", utilizado para um ancião, é desrespeitoso; geralmente chamamos "o senhor", "a senhora". Já o "você", é um pronome de tratamento que utilizamos entre iguais. É má educação chamar qualquer um de "você".
Interessante este ponto que transcende, e bastante, a questão do uso do tratamento, em termos linguísticos. Diz respeito à nossa relação com Deus. E acho que tem também bastante relação sobre o que tratamos sobre liturgia [e abusos litúrgicos], sobre o possível uso do latim etc.
Tem a ver também com a questão de autoridade, obediência, e sua compreensão [ou incompreensão] na cultura atual.
Há pessaas que sempre chamaram o pai de você. Isso pode ser costume de família.
São costumes sociais, e a tendência é que os filhos chamem os pais de você, cada vez mais. E não há nenhum problema nisso, pois é importante a familiaridade, a amizade entre pais e filhos. Mas não será, especialmente quando os filhos são pequenos, um tratamento "entre iguais".
A Deus nós adoramos, obedecemos, prestamos reverência. Mas, como a liturgia coloca em nossos lábios antes da oração do Pai-Nosso, ousamos chamá-lo Pai, e tratá-lo com essa familiaridade. Filhos pequenos não ficam escolhendo palavras. Tratar a Deus, na intimidade, por você, é uma relação que facilita - ao menos para mim - a infância espiritual.
Jesus chamou-O Abba, que seria equivalente ao nosso papai. E Deus colocou essa expressão nos lábios de alguns santos, em arroubos místicos. Um foi São Josemaria.
No outro extremo, está a familiaridade excessiva que leva a perder a reverência. Na linha do dito acima, que bastante do abuso litúrgico vai por aí.
Independente do uso de "tu" em outros idiomas ser adequado, não é o caso do português. Se falamos português, não podemos agir como se estivéssemos falando em latim.
Não é desculpa o fato de ser assim em latim ou em inglês ou espanhol, a não ser que estejamos rezando nesses idiomas.
O Abba é equivalente a papai no hebraico atual. No aramaico, parece que corresponde a pai mesmo.
Todavia, Deus é infinitamente mais do que nosso pai terreno. A figura do pai no Império Romano não denota tanta intimidade, denotava poder absoluto. Aliás, quem estuda os costumes de Roma, sabe que o pai tinha o poder de vida e morte sobre os filhos, o pater potestas. Não é fazer analogia disso em relação a nossa filiação com Deus, mas isso mostra como a figura do pai, na Bíblia, pode denotar mais respeito e autoridade do que denotaria intimidade.
Nós jamais poderíamos ousar relacionar-nos com Deus com intimidade, se Ele não tivesse tomado a iniciativa. Mas Ele tomou.
Foi Ele que resolveu fazer-se Criança. Pensemos no Menino Jesus, talvez compreendamos como posso chamá-lo de você
E, "pior", foi Ele quem se fez Pão e nos disse que o comêssemos. Quer "irreverência" maior?
Adoração e intimidade não são coisas incompatíveis. Ao contrário, Deus deseja ambas de nós.
Podemos abarcar aqui também a diferença do "Pai Nosso" católico e ortodoxo/protestante, uma vez que uma dessas diferenças consiste no uso do plural majestático.
Outra diferença consiste na troca das palavras "dívidas/os nossos devedores" por "ofensas/a quem nos tem ofendido". Cabe ressaltar aqui que essa troca só existe em português. Em latim, se diz "debita/debitoribus nostris", e que, até por volta de 1957, nós, católicos, orávamos dessa forma em português.
A última diferença é o acréscimo de algumas palavras ao fim do Pai Nosso, que são ditas na liturgia oriental, porque constam do texto bizantino do Novo Testamento, donde os protestantes fizeram a sua tradução. A forma ortodoxa pode ser encontrada na Didaqué, do séc. I:
"Pai nosso que estás no céu, santificado seja o teu nome, venha o teu Reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão-nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai nossa dívida, assim como também perdoamos os nossos devedores e não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do mal porque teu é o poder e a glória para sempre"
Se o do "tu" for desrespeitoso, então São Francisco foi um santo muito sem-educação:
Cantico delle Creature
Altissimu, onnipotente, bon Signore,
Tue so' le laude, la gloria e l'honore et onne benedictione.
Ad te solo, Altissimo, se konfane,
et nullu homo ene dignu Te mentovare.
Laudato sie, mi' Signore, cum tucte le Tue creature,
spetialmente messor lo frate Sole,
lo quale e' iorno, et allumini noi per lui.
Et ellu e' bellu e radiante cum grande splendore:
de Te, Altissimo, porta significatione.
Laudato si', mi' Signore, per sora Luna e le stelle:
in celu l'ai formate clarite et pretiose et belle.
Laudato si', mi' Signore, per frate Vento
et per aere et nubilo et sereno et et onne tempo,
per lo quale a le Tue creature dai sustentamento.
Laudato si', mi' Signore, per sor'Acqua,
la quale e' multo utile et humile et pretiosa et casta.
Laudato si', mi' Signore, per frate Focu,
per lo quale ennallumini la nocte:
ed ello e' bello et iocundo et robustoso et forte.
Laudato si', mi' Signore, per sora nostra matre Terra,
la quale ne sustenta et governa,
et produce diversi fructi con coloriti fiori et herba.
Laudato si', mi' Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore
et sostengo infirmitate et tribulatione.
Beati quelli ke'l sosterrano in pace,
ka da Te, Altissimo, sirano incoronati.
Laudato si', mi' Signore, per sora nostra Morte corporale,
da la quale nullu homo vivente po' skappare:
Guai a quelli ke morrano ne le peccata mortali;
beati quelli ke trovara' ne le Tue sanctissime voluntati,
ka la morte secunda no'l farra' male.
Laudate et benedicete mi' Signore et rengratiate
e serviateli cum grande humilitate. (6)http://www.cele-jp.com/bukkyo/tesi01.htm
Como no latim nao há a utilização do pronome da segunda pessoa do plural de forma cerimoniosa, o Tu é usado quando o texto refere-se ao interlocutor singular e o Vos é usado para o plural. Na tradução utilizam-se critérios do local onde o texto será utilizado, no Brasil traduziu-se o Tu, quando referia-se a Deus, pelo Vós. Mas foi uma questão de adaptação, pq o Tu que Cristo usava com os discipulos, continuou Tu na nossa versão: Tu es Pedro!
Na saudação angélica traduziram como singular: "o Senhor é contigo", mas na oração da Ave-Maria, foi mudado pelo "convosco". Ora, como explicita Santo Tomás de Aquino no Comentario a Ave-Maria, O Anjo é inferior, por isso saúda reverentemente a Virgem e mesmo assim o texto foi traduzido com "Tu".
Qualquer linguagem que utilizemos para aquele que é indizível e insondável, é imperfeita em insuficiente.
Santa Teresa de Ávila, mestra da oração e doutora da Igreja, ensinou que a oração é um trato de amizade com Deus. E dentre vários exemplos, embora ela o chamasse de Sua Majestade em seus escritos, ela era em íntima e pessoal com Ele, as vezes até ousadamente ou até escandalosamente para quem não percebe a profundidade da coisa.
Em quais razões a Igreja teria em colocar o plural majestático nas orações litúrgicas? É a própria Igreja que nos propõe um modelo de oração.
Aí é que está! Não foi a Igreja que colocou, dado que, na língua da Igreja, o latim, não há plural majestático: usa-se o singular mesmo. O plural majestático na liturgia é coisa da CNBB. Ato louvável, mas:
a) serve como regra apenas para a liturgia;
b) não é universal, dado que só vigora no Brasil;
c) a oração pessoal pode se dar de diferentes maneiras.
São duas vias, e ambas igualmente válidas.
Preceptivo na oração é a liturgia: é ela que nos faz rezar do mesmo modo na Missa, no Ofício, nos sacramentos, nas bênçãos, nas procissões. A devoção pessoal, contudo, foge às regras e é adaptada às necessidades de cada alma. Uma alma pode se aproximar mais de Deus, na sua devoção privada, pelo uso do plural majestático, outra pelo singular - tu ou você . Há uns desconfortos em estabelecer regras universais para a devoção individual. Universal deve ser a liturgia; a devoção privada é pessoal, individual, adaptada a cada alma (e isso é um argumento anticomunista indireto, hehehe ), de acordo com sua vivência da espiritualidade cristã, com seu diretor espiritual.
Citando o Prof. Carlos Ramalhete, sobre a Igreja: Ela é católica por ser universal, por ser capaz de abranger a todos: todos são chamados a aceitá-la, cada qual ao seu modo (evidentemente, não se trata de relativismo: no essencial a unidade é indispensável, mas o acidental fica a critério de cada um; todo mundo vai à Missa, mas cada um escolhe suas próprias devoções particulares).
Sobre o uso do vos na Liturgia, penso que o assunto é mais complexo do que simplesmente dizer que a Igreja definiu assim. O uso de plural majestático nas orações em Português é muito anterior à tradução da Santa Missa. Surgiu de uma evolução cultural, da qual a Igreja certamente se apropriou.
Tal tratamento (plural majestático) foi acolhido pela Igreja no Brasil em virtude da tradição (com t minúsculo) da língua portuguesa em usá-lo para se dirigir aos poderosos da Terra. Era assim que se dirigia aos reis ("vossa majestade"), logo, também, ao Rei dos reis.
Tal tratamento, hoje, deixou de ter sentido. Como língua viva, o português perdeu, hoje, a necessidade do uso do plural majestático para expressar reverência à autoridade.
Mas, mesmo assim, é agradável seu uso na liturgia.
Há quem pensa que uma certa "intimidade" na oração levar a uma falsa concepção de que Deus interage com suas criaturas.
Mas essa concepção de forma alguma é falsa, é claro que Deus interage com suas criaturas!
Concordo com as suas colocações sobre a oração de petição. Não rezamos para mudar a vontade de Deus.
Mas a petição não é a única finalidade da oração. Há outras 3: a adoração e louvor, o desagravo e petição de perdão, a ação de graças. E a principal petição é seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu.
E a [bem compreendida] intimidade com Deus nunca pode ser excessiva , porque essa é a essência da santidade que Ele nos pede a todos. Viremos a ele e nele faremos a nossa morada, é a promessa de Cristo a quem cumpre a Sua vontade.
E nisso consiste o Céu, na intimidade com Deus para sempre.
A imutabilidade divina é dogma afirmado, sem sombra de dúvida, pela fé e pela razão. Todavia, isso não torna inúteis ou sem resposta as nossas orações, uma vez que Deus, antes de tudo, já conhece o que havemos de pedir, e já nos atende desde a eternidade, de acordo com a Sua vontade, e pela Sua sábia Providência.A intimidade com Deus na oração não é para mudar a vontade dEle, é para mudar a nossa, conhecendo a vontade de Deus e identificando-nos com ela.
Não foi esse o fruto da oração de Jesus no horto?