Para que Adão comia se não podia morrer de inanição? Adão respirava?
Para que se não podia morrer por hipoxia?
Na verdade, é de fé que Adão era imortal, mas não está estabelecido que
essa imortalidade fosse uma espécie de invulnerabilidade ou de
incorruptibilidade. É certo que ele não morreria, mas isso envolvia uma série
de circunstâncias decorrentes da vida no estado de justiça original, inclusive
a própria ciência infusa de Adão aliada à Providência divina.
Ele tinha dons extraordinários, sobrenaturais, como a imortalidade, a
imunidade de concupiscência desregrada, a impassibilidade, a ciência infusa. O dom da imortalidade é de fé divina e católica definida. Agora, eu não sei
explicar de modo conveniente essa imortalidade, mas eu entendo que não era uma
espécie de invulnerabilidade, mas sim uma imortalidade prática, dependente em
parte de uma força anímica ligada à graça santificante, em parte da
Providência, como Sto. Tomás parece ensinar.
Deus se comunicava diretamente com ele, como quando lhe impôs a ordem de
não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal e quando lhe trouxe os
animais para que Adão lhes desse nomes. Agora, com respeito a suas outras
perguntas, vou pesquisar a respeito.
Parece-me, ainda, que o fim último do homem, isto é, a visão beatífica,
não seria atingido se Adão não pecasse. Daí a expressão “felix culpa” (culpa
feliz).
Ele não o via, pois Deus não pode ser
visto com olhos humanos, mas só intelectualmente, por meio da visão beatífica.
E Adão não tinha a visão beatífica, do contrário, não teria pecado. Certos
homens, como Moisés e Paulo, e, provavelmente, também Santo Tomás, tiveram a
visão beatífica, não de modo imanente, como se dá nos bem-aventurados, mas a
modo de paixão transeunte, nesta vida, por causa daquela experiência mística
que teve perante a qual disse que seus escritos eram como palha.
Não
há distinção entre santos do Antigo e do Novo Testamento. O batismo é apenas a
causa instrumental da graça e essa já existia no Antigo Testamento. Abraão foi
salvo pela graça, por meio da fé. E
Moisés viu a essência divina. O próprio Santo Tomás reconhece isso na Suma
Teológica.
Nossa Senhora ficou livre da contração do pecado
original pelos méritos de Cristo, mas não estava no mesmo estado dos primeiros
pais, exceto com respeito à graça (que era maior do que aqueles tinham) e à
imunidade de concupiscência desregrada. Como filha de Adão, ela teve o débito
do pecado como todos nós, ainda que sem experimentar o pecado. Não acho que se
deva buscar alguma razão para que Deus não a tivesse criado imortal ou
impassível apenas na sua missão de Corredentora, mas porque aprouve a Deus
colocá-la, de algum modo, em solidariedade conosco e com Seu Filho, e menor do
que Cristo, inclusive na graça recebida em Sua Humanidade.
Mesmo que Nossa Senhora não tenha passado pela morte, é ponto
inquestionável que sua carne era mortal, e que teria morrido se não fosse
arrebatada aos céus. Seu corpo não tinha sido glorificado, nem sua alma, o que
se prova pelo fato de não gozar, em vida, da Visão Beatífica. Não faria sentido
uma alma não glorificada num corpo glorificado.
Cristo, por outro lado, tinha uma alma glorificada num corpo não
glorificado, e aí sim faz sentido, pois a alma é a parte mais importante do
homem.
A
visão da essência divina é possível em vida desde que de modo transeunte. (De modo transeunte quer dizer de modo passageiro, sem que a glória
esteja imanente e redunde na glorificação do ser em questão, mas somente em
parte.) Essa era a opinião de Santo Agostinho e de Santo
Tomás: http://hjg.com.ar/sumat/c/c175.htm l#a3
Contanto que eles fossem em corpo, pois é dogma definido pela Igreja em
concílios que não haveria morte sem o pecado. Melhor ainda: teriam a visão
beatífica aqui mesmo, no Paraíso terrestre.
Mas eu não acho que dizer que Adão e Eva não teriam a visão beatífica
sem que houvesse o pecado, seria fazer a visão beatífica fruto do pecado. Pois
é doutrina certa, para mim, que Cristo só se encarnou por causa do pecado. E a
Encarnação não é fruto do pecado, mas da misericórdia de Deus. Tudo estava
incluído no plano divino desde a eternidade, e este plano incluía o pecado, a
Encarnação como remédio do pecado e a visão beatífica como fruto da Encarnação.
Santo Tomás ensina que as obras de Adão eram tão
meritórias quanto as nossas. Logo, ele merecia o céu, como as almas dos que
morreram em estado de graça antes de Cristo o mereciam. No entanto, os meios
para que chegassem ao céu foram aqueles proporcionados pela Providência e não
outros. Como Deus é Aquele que determina o fim do estado de merecer e
desmerecer, não me parece haver obstáculo em que a situação final de Adão
permanecesse indefinida até que este houvesse pecado.
Santo Tomás ensina que o que não encontra provas na Revelação, não pode
ser defendido. No caso, a Encarnação como resultado do pecado não configura
nenhuma vitória de Satanás, pois até os atos de Satanás estão nos planos de
Deus. Antes, revela a imensa sabedoria de Deus e reflete as palavras do
Apóstolo: onde abundou o pecado, superabundou a graça.
Com respeito a Adão, a teologia está acostumada mesmo a fazer essas
especulações (se os filhos de Adão seriam ou não justos, se seriam confirmados
em graça, o que aconteceria se só Eva tivesse pecado, etc.), portanto, eu penso
que Deus assinalaria um outro fim ao estado de merecer e desmerecer, que não
fosse a morte propriamente.
O fim do estado de merecer e desmerecer, em caso de Adão não ter pecado,
poderia ser o momento em que a Terra estivesse densamente povoada, como
cumprimento da ordem "Crescei e multiplicai-vos" (levando em conta
que os filhos de Adão e Eva que pecassem morreriam).
A imortalidade de Adão e de toda a raça humana, caso Adão não tivesse
pecado, está definida pelo Arausicano e pelo Tridentino. Eu não admito como
possível uma solução, concebida pelos teólogos modernos, de que apenas não
teriam um morte dolorosa, pois é totalmente contraditório com o ensino claro
desses concílios.
Eu creio que Santos Henoc e Elias estão confirmados em graça, logo, sem
a possibilidade ao menos do demérito. Contudo, a morte não assinala
necessariamente o fim do estado de merecimento e desmerecimento, do contrário,
a tese dos que sustentam que a Virgem nunca passou, nem passará pela morte,
seria absurda.
Também não vejo necessidade de que Deus arrebatasse os primeiros pais,
posto que já viviam no Paraíso terrestre, não contaminado pelo pecado, como a
terra em que viviam Santos Henoc e Elias e que nós habitamos.
O cânon 1 do Concílio Milevitano, aprovado por Inocêncio I:
“Qualquer que disser que o primeiro homem, Adão, foi criado mortal, de
sorte que tanto se pecara como se não pecara teria que morrer no corpo, isto é,
que sairia do corpo não por castigo do pecado, senão por necessidade da
natureza, seja anátema.”
Corrigindo: o cânon acima do XVI Concílio de
Cartago, aprovado pelo Papa Zósimo. Na edição do Denzinger-Hünermann em
português está:
“Cân. 1. Foi decidido por todos os bispos ... reunidos no santo Sínodo
da Igreja de Cartago: Quem disser que Adão, o primeiro homem <foi> criado
mortal, de modo que, pecasse ou não pecasse, teria corporalmente morrido, isto
é, teria deixado o corpo não por causa do pecado, mas por necessidade natural,
seja anátema.”
Impressionantemente, é exatamente isto que alguns teólogos modernos
defendem.
Há dúvidas sobre a aprovação de alguns cânones do XVI Concílio de
Cartago pelo Papa Zósimo, o que incluiria o cânon acima mencionado, embora seja
essa a doutrina que a Igreja sempre sustentou, sendo que a mesma doutrina pode
ser provada pelo Arausicano II e pelo Tridentino.
A visão beatífica é o fim último do homem, mas isso não significa a tese
de alguns teólogos como Henri de Lubac e Blondel de que esse fim último é
intrinsecamente ligado à natureza humana. Em tese, é possível a criação do
homem em estado de natureza pura e a felicidade natural.
Já a visão de Deus é impossível de ser relatada com palavras ou imagens,
tanto que os místicos que chegam a ter a experiência do rapto, são abstraídos
totalmente dos sentidos.
O que Pe. Paulo Ricardo diz se alinha com o que eu disse no início do
tópico. A imortalidade do homem não era natural. Além disso, como Sto. Tomás
entendia, não era uma imortalidade totalmente intrínseca ao corpo humano.
Segundo eu entendi de Sto. Tomás, havia vários dispostivos que impediam a morte
natural do homem, fosse esta causada por elementos internos ou externos.
Havia corrupção
do corpo enquanto aquela estivesse unida uma força sobrenatural impressa na alma, que impedia a Deus (S. Th., Ia, q.97,
a.1). O que me parece ser: impedia agentes intrínsecos ao próprio corpo de
dissolverem-no.
Havia a reta razão, que atuava ditando ao homem o que lhe era
prejudicial, e a Providência divina, que o defendia de qualquer imprevisto que
lhe pudesse sobrevir. Ambas preservavam o corpo do homem de toda lesão que algo
duro pudesse produzir-lhe (a. 2).
Havia a árvore da vida cujo fruto robustecia o vigor da espécie, no
entender de Sto. Tomás, contra o desgaste produzido pela mescla de elementos
estranhos (a.4).
De qualquer forma que se entenda isso com base no conhecimento
científico atual, é certo que Sto. Tomás e os Padres anteriores a ele entendiam
perfeitamente que o corpo do homem é um vaso frágil, sujeito a agentes externos
e internos que podem corrompê-lo, e que a imortalidade dada a Adão não podia
ser contrária à frágil condição do corpo — pois também é conveniente
à nossa natureza que tenhamos um corpo mole e passível —, mas estar além
dela e apesar dela.
Já na ressurreição, o corpo terá qualidades que o corpo de Adão não
possuía, pois não servirá aos mesmos propósitos da vida hodierna.
Este artigo da Suma Teológica trata exatamente da
pergunta no início do artigo:
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