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O efeito da teoria da resistência lefevbrista


Por Carlos Ramalhete
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Minha condenação *à atitude* deles vem justamente do fato de que eles poderiam e deveriam fazer um bem gigantesco à Igreja, e ao invés ficam brincando de casinha em suas pseudo paróquias, tirando assim muita gente boa do campo de batalha.
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Explico minha posição diretamente:

1: A Igreja é *visível* e *hierárquica*, sendo porém composta por seres humanos, filhos de Adão. O resultado disso é que sempre houve e sempre haverá maus clérigos, sempre houve e sempre haverá politicagens, sempre houve e sempre haverá toda sorte de imperfeição humana na Igreja. Santo Agostinho já tinha que lidar com gente que queria uma Igreja de puros e santos; esta Igreja, contudo, é a Igreja Triunfante, não a Militante, onde estamos. 

2: A Igreja está em crise, provavelmente a pior crise da sua história. Esta crise é causada pela ascendência do modernismo, dito por S. Pio X "síntese de todas as heresias", e se manifesta como relativismo, indiferentismo e imanentismo, tendo como corolários a heresia, a desobediência e os atentados permanentes à liturgia que vemos por toda parte. Esta é uma crise *da Igreja* e *na Igreja*. E, como já disse, a Igreja é visível e hierárquica. O resultado é que esta luta só pode ser travada dentro da Igreja visível e hierárquica. Enquanto a SSPX estava plenamente dentro da Igreja, que é visível e hierárquica, eles estavam combatendo o bom combate. 

Quando estabeleceram a Igrejinha deles, eles *abandonaram* o combate. Não adianta rigorosamente nada ficar celebrando a Missa de sempre em capelinhas informais, porque o que deve ser levado de volta à ortodoxia são as paróquias e dioceses, não o terreno onde eles constroem uma capela desligada da Igreja visível e hierárquica. Cada Missa que é celebrada em uma capelinha da SSPX é uma Missa que *não* é celebrada onde ela deveria. Cada padre que cria sua capelinha independente é um padre que *não* vai fazer a diferença numa diocese e não vai ser um dia ser feito Bispo dessa diocese.

3: A SSPX, ao se colocar fora da hierarquia da Igreja e oferecer uma versão mais atingível da ortodoxia (no sentido que na paróquia vai ser sempre uma luta conseguir uma melhora ínfima, enquanto na pseudo-paróquia deles já se tem, logo de cara, uma liturgia reverente, etc.), atrai para si as pessoas mais promissoras, retirando-as portanto das paróquias e das dioceses onde a verdadeira luta, que é pela restauração *da Igreja* (não pela manutenção paralela de uma versão moderna dos acidentes da Igreja), é travada.

Um seminarista que poderia manter a boca fechada diante de seus formadores modernistas e estudar teologia ortodoxa nas horas vagas, vestindo uma batina e celebrando santamente depois de ordenado, vai evidentemente achar bem mais fácil e bem mais simples ir para La Reja. Só que se ele vai para lá, é um padre ortodoxo a menos na Igreja. Um jovem que poderia e deveria dar aulas de catecismo, treinar coroinhas, etc., que descubra uma capelinha da SSPX vai passar a participar da Missa lá e abandonar ao Deus-dará a paróquia onde ele deveria estar fazendo uma diferença. Primeiro o sujeito começa a ir em duas Missas dominicais, depois ele não consegue mais engolir a Missa dominical da paróquia, depois ele larga a catequese e outras coisas em que estava combatendo o bom combate, e quando se vê ele está em tempo integral fora da Igreja hierárquica, seja na SSPX ou equivalente (a capelinha do Sr. Fleischman, por exemplo), ou mesmo indo parar numa Igreja cismática oriental. É claro que é mais cômodo ficar num lugar em que se possa ter como ponto pacífico que a liturgia é decente e todo mundo acredita no Credo, mas em tempo de guerra, lugar de soldado é onde as balas estão voando, não num quartel independente, pintando meio-fio de branco.

4: Ao recusar-se a seu dever de obediência e submissão ao Romano Pontífice, independentemente das razões, desesperos ou sofismas que se queira aduzir, a SSPX se enfiou num caminho perigosíssimo. O Espírito Santo dá as graças necessárias para que a Igreja - visível e hierárquica - restaure a ortodoxia, mas *não dá* graças para manter a ortodoxia de um grupo que se separa dela. É por isso que venho falando dos jansenistas e vétero-católicos: duas décadas depois da separação, eles eram tão ou mais ortodoxos que a SSPX é hoje. Quanto mais tempo passar, mais difícil fica manter a Fé, e mais chances eles têm de abandoná-la completamente, como ocorreu com os grupos citados.

5: Este caminho já está sendo tomado, e pode ser percebido mais facilmente nos seguidores, porque quando se abandona a Barca de Pedro se começa a ser conduzido, não mais a conduzir. Os padres da SSPX fazem sofismas para justificar sua insubmissão prática, mas os seguidores não têm formação ou sequer interesse nos sofismas, e só entendem - nessa brincadeira de telefone sem fio - que o Papa é um monstro satânico. E aí os padres têm que aumentar o teor de suas invectivas para agradar a este público, o que faz com que seus seguidores fiquem ainda mais distantes da Igreja, etc. Se você pegar o discurso da SSPX do tempo em que D. Lefebvre vivia e comparar com o de hoje, vai ver que eles vão infinitamente mais longe do que ele jamais foi em suas acusações e em suas exigências (absurdas) de perfeição por parte dos hierarcas.

6: É da natureza humana que se queira agradar. É isto que faz com que seja dificílimo para os padres que se enfiam atrás do altar não virar animador de festa de peão, e é exatamente o mesmo mecanismo psicológico que faz com que os dirigentes da SSPX se preocupem em não alienar seus seguidores, que estão muito adiante deles em termos de ódio a Roma, devido ao que mostrei no ponto 5. Não se trata *apenas* de dinheiro. A SSPX não é uma máquina de enriquecer ninguém. Mas se trata da construção de um novo seminário, de uma nova capela, de obras que eles percebem como meritórias e que deixarão de ser feitas se o milionário Fulano retirar o seu apoio por ver a volta deles à plena união com a Igreja como uma rendição à Roma modernista.

7: Portanto, na hora em que eles voltarem à plena comunhão com a Igreja (para o quê terão que lidar com os problemas dos pontos 4 a 6, que se agravam cada vez mais à medida que o tempo passa), eles vão trazer de volta para o campo de batalha os melhores guerreiros, que hoje eles atraem para ficar pintando meio-fio de branco nos quartéis independentes deles, e eu vou dar todo o apoio que eu puder à ação deles. Até lá, com bala voando em torno da cabeça, peço perdão mas não vou deixar de condenar quem covardemente abandona o campo de batalha. O amor à ortodoxia e aos acidentes que a revelam todos nós devemos ter. O problema é que não adianta nada ter os acidentes sem ter a essência.

Houve quem já bateu muito a cabeça, inutilmente se humilhando pros Bispos, pedindo a Missa de sempre. Saindo em romaria pedindo aos padres, e sempre levando um não. Ou seja: com isso se está lutando dentro da Igreja. E está lutando sozinho, porque os padres que diriam sim foram cooptados e saíram dos seminários diocesanos para La Reja, os leigos que estariam pedindo junto estão no bem-bom, fingindo que está tudo bem na capelinha Disney da SSPX. Se esse pessoal não houvesse saído, talvez houvesse massa crítica para a restauração já ter ocorrido. Se não na sua diocese, em outra, e, de lá, outra, e outra, e outra.

Mas os melhores guerreiros abandonam a luta e deixam sozinhos os outros, que por se verem sozinhos desanimam e abandonam a luta e quando se e a dura obra de restauração, que duraria décadas, senão séculos, de qualquer modo (destruir é fácil; reconstruir é dificílimo), vai sendo mais e mais atrasada. E Deus botou a gente na Igreja, e nos dá uma missão na Igreja. E se Ele te deu a graça da Fé, é para que você participe da obra da restauração da Igreja, não para que fique brincando de Igreja fora dela, como faz a SSPX.

É o esquema de reserva. Ao sair da Igreja visível e hierárquica, eles fizeram com que passasse a ser possível negar liminarmente qualquer acesso à Tradição. Conseguiram o que os modernistas nunca teriam conseguido sem a ação deles: associar automaticamente Tradição e desobediência, Tradição e cisma. E o ciclo vicioso continua; você tenta lutar, se vê sozinho, ouve falar deles, vai procurá-los, abandona a batalha, e o próximo que se juntaria a você se vê sozinho, e por aí vai. É um papel pega-moscas para tirar os ortodoxos da Igreja, uma armadilha satânica em que eles, provavelmente de boa fé, acabaram caindo. Ele podem ter as melhores intenções do mundo, mas estão fazendo o jogo do Demônio e deixando o campo livre para os modernistas.

Tantas pessoas que poderiam ter feito enorme diferença, poderiam estar fazendo diferença, padres que seriam Bispos magníficos, leigos que arrastariam consigo paróquias inteiras à ortodoxia, e foram perdidos por abandonarem a luta em prol de uma capelinha Disney de onde ficam, amargos, xingando os hierarcas ao invés de combater o bom combate.

Ubi Petrus, ibi Ecclesia. Ponto.

Enquanto esta oposição se der de fora da Igreja, visível e hierárquica, ela não difere da oposição da assembléia de deus. Aliás é ainda pior (corruptio optima pessima), porque eles conseguiram e conseguem, enquanto estiverem fora, fazer com que se possa chamar de cismático e desobediente quem tenta obedecer ao Santo Padre e ajudar na Restauração.

É esta a brincadeira de telefone sem fio que ocorre, que descrevi no meu ponto 5, no começo desta mensagem. Este é o caminho para a heresia. Os padres deles negam em palavras e fazem em atos. Os leigos negam em atos e palavras, e com isso fazem com que os padres estiquem ainda mais os seus sofismas, num ciclo vicioso que vai acabar levando (como já levou, em muitos "rachas" da SSPX, como a SSPV) a não haver mais chance de união com a Igreja.

Se eles voltarem, talvez o mosteiro de Friburgo não volte. Se o mosteiro voltar, talvez o Sr. Fleischman não volte. E por aí vai. A cada ponto deste telefone sem fio se fica mais distante da santa obediência. Eles são como uma tropa de elite que tenha todo o treinamento e toda a capacidade, mas que escolhe desobedecer e não lutar.

E os jovens que seriam atraídos para ela saem do campo de batalha e ficam, com eles, só treinando e fazendo ordem-unida, sem entrar em ação nunca. Na hora em que eles voltarem à plena comunhão não vai ter pra mais ninguém, justamente porque eles atraíram para si (e, portanto, para longe da batalha) os melhores.

Mas enquanto não voltarem ao campo de batalha, eles são piores que inúteis: são daninhos, por afastarem da batalha aqueles que fariam a diferença. Não adianta nada ter uma tropa de elite, impecavelmente treinada e armada até os dentes, se ela se recusa a entrar na batalha. Pode-se dizer que a Igreja ficou sem a tropa de elite, porque uma tropa que não ouve o general não é uma tropa. E como, para piorar, muito soldado realmente bom acaba caindo no canto de sereia deles e abandonando com eles a batalha, eles ainda diminuem a força das tropas comuns.

Eles estão lá, no mundinho de fantasia deles. Eu estou brigando, usando das armas que tenho: a palavra escrita, o testemunho, os debates, etc. Eu tive que enfiar meu primogênito num carro e ir batizá-lo a 400 km de distância para que o batismo não fosse feito por uma "mulher trabalhadora" (o que o faria válido, porém ilícito). Eles fazem batismos válidos porém ilícitos em capelinhas confortáveis, com todo mundo fingindo que está numa paróquia. Eu vou dar aulas para seminaristas e cursos para leigos, e eles ficam lá, no ar-condicionado, só chamando os seminaristas para abandonar o seminário e os leigos para abandonar a paróquia.

Eu já recusei a ordenação como diácono permanente para (entre outras coisas) poder ter certeza de que poderia continuar falando livremente; eles ordenam padres acéfalos aos magotes. E por aí vai. E como eu faço, muitíssimos outros fazem mais e melhor que eu, combatendo o bom combate e lutando pela Restauração da Igreja, cada vez mais sozinhos, perdendo a cada dia um companheiro, que abandona a luta para ir se refestelar nos sofás das sacristias Disney da SSPX. Que fardo é esse? O de atrair os melhores para brincar de casinha enquanto a guerra come solta no mundo real, nas paróquias, nas dioceses, etc.?!

Os nossos fardos de leigos são pesadíssimos, como tbm são pesadíssimos os fardos dos padres ortodoxos dentro da Igreja visível e hierárquica de hoje. Se os mais fracos, os mais bobos, os menos ortodoxos abandonassem seus fardos para ir brincar de casinha na SSPX, dava pra engolir. Mas eles atraem os bons, e os mais ou menos, como eu, é que ficam carregando a batalha nas costas.

É a minha dedução lógica, baseada em quase vinte anos de papo com seguidores da SSPX e em leitura dos escritos dos líderes deles. A acusação de traição, de estarem se vendendo à Roma modernista está sendo feita direto desde o princípio das negociações, por cujo sucesso rezo fervosamente. E eles seriam uns monstros e uns loucos se não se considerassem responsáveis por estas pessoas, que foram formadas por eles, e não se preocupassem com a saída delas e com o impacto que isto teria no trabalho deles.

Como já disse, se vemos as acusações, que estão se amontoando desde o início das negociações, de traição à suposta causa da Tradição (digo suposta porque a causa deveria ser a da Tradição *na Igreja*, não a manutenção dos acidentes da Tradição numa redoma fora dela), é evidente que é uma preocupação grave deles, com razão. Os Padres de Campos passaram por isso; o mesmo cara que escreveu um livro elogiando-os soltou os cachorros neles quando voltaram à plena comunhão. O pessoal da FSSP passou por isso. Estranho seria se eles não passassem. E, como já disse, não se trata de interesse pecuniário, mas de uma estrutura, um modo de vida que é posto em risco.

É evidente que não há propriedades materiais que valham a graça de estar na Igreja e poder se unir ao combate em curso, mas eles seriam, como já disse, monstros e loucos se não se preocupassem com a perda de gente que eles mesmos formaram no ódio a Roma e na perda de capacidade de ação que esta perda acarretaria.

Muito será cobrado de quem muito recebeu. O pessoal da SSPX é muitíssimo melhor que o pessoal, por exemplo, dos capuchinhos. Por isso, o peso com que se há de medir o pessoal da SSPX é muito diferente daquele com que se há de medir o dos capuchinhos. É necessário ser muito mais exigente com a SSPX, porque eles são melhores. Se um capuchinho acredita na Real Presença, já é de bater palmas. Mas para alguém da SSPX, isso há sempre de ser muito menos que o mínimo necessário, exatamente por não estarmos tratando de toupeiras TL, mas de quem se propõe a ser plenamente ortodoxo.

Em direito canônico, o legislador é o Papa. Se um Papa faz algo, este algo se torna lícito por o Papa o ter feito. Ele não é um monarca constitucional, preso pela lei disciplinar.
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PARA CITAR ESTE ARTIGO:


O efeito da teoria da resistência lefevbrista

Carlos Ramalhete 06/2011 Tradição em Foco com Roma.



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