Santo Tomás de Aquino diz que a Virgem herdou o pecado mesmo, em ato. Ele não admite a Imaculada Conceição em sentido estrito. Hoje, tal postura seria herética. No entanto, os argumentos de Santo Tomás contra a Imaculada Conceição são válidos, pois Santo Tomás não fazia distinção entre o pecado mesmo e o débito do pecado. Daí ele diz que Maria não poderia ser santificada antes de existir como criatura, e que "todos pecaram".
Concluindo: a conclusão de Santo Tomás não é válida, mas os argumentos que ele usa são, e nos ajudam a compreender melhor o dogma da Imaculada Conceição.
No sermão sobre a Ave-Maria, há uma passagem em que S. Tomás confessa a Imaculada Conceição, mas, dada a posição de Santo Tomás na Suma Teológica, essa passagem pode passar por apócrifa. Todavia, Pe. Garrigou-Lagrange defende a sua legitimidade.
Em que estado de natureza foi concebida a Virgem?
Em 8 de dezembro de 1854, Pio IX, na Bula Ineffabilis Deus, fez a definição oficial do dogma da Imaculada Conceição de Maria. Assim o Papa se expressou:
Em honra da santa e indivisa Trindade, para decoro e ornamento da Virgem Mãe de Deus, para exaltação da fé católica, e para incremento da religião cristã, com a autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e com a nossa, declaramos, pronunciamos e definimos a doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus e, portanto, deve ser sólida e constantemente crida por todos os fiéis.
Primogênito
O Evangelho de São Lucas (e Mateus I, 25 na Vulgata) diz Nossa Senhora deu à luz seu filho primogênito (Lucas II, 7).
Ora, dizem alguns, em especial os hereges protestantes: primogênito quer dizer “o primeiro que foi gerado”; logo, nasceram outros. Além disto, São Lucas escreveu o seu Evangelho não no tempo em que o Menino nasceu, porém muitos anos depois da morte de Cristo; se o Evangelho diz primogênito e não unigênito, isto é sinal de que o evangelista sabia da existência de outros filhos. Logo, Maria não foi virgem depois do parto.
Toda essa argumentação se baseia num falso fundamento: o protestante, no caso, não tem uma idéia exata do que quer dizer primogênito.
E a questão não está em saber qual a impressão que vai produzir esta palavra no espírito de um herege que está ansioso por encontrar argumentos afim de provar que Maria Santíssima perdeu um dia a sua virgindade. A questão está em saber qual o significado que davam os hebreus à palavra primogênito, pois é neste sentido que a empregam os Evangelhos.
Primogênito era simplesmente isto: aquele antes do qual não tinha nascido nenhum outro. Nascessem outros depois ou não, isto não importava no caso; o primeiro que nascia era primogênito sempre e, como tal, tinha uma especialidade, era consagrado a Deus:
Falou mais o Senhor a Moisés e lhe disse: Consagra-me todos os primogênitos que abrem o útero de sua mãe entre os filhos de Israel, assim de homens como de animais, porque todos eles são meus. (Êxodo XIII, 1e 2).
Todo macho que abre o útero de sua mãe será meu; os de todos os animais, assim de vacas como de ovelhas serão meus. (Êxodo XXXIV, 19)
E é precisamente porque vai descrever depois a apresentação do Menino no Templo, na sua qualidade de primogênito, que São Lucas, ao relatar o nascimento do Divino Mestre, O chama deste modo:
E depois que foram concluídos os dias da purificação de Maria, segundo a lei de Moisés, O levaram a Jerusalém para O apresentarem ao Senhor, segundo o que está escrito na lei do Senhor: Todo o filho macho que for primogênito será consagrado ao Senhor. (Lucas II, 22 e 23)
Outro exemplo que pode ilustrar a questão, é o de Êxodo XII, 29 e 30. Quando Deus fez morrer no Egito todos os primogênitos, é claro que mesmo aqueles que já eram homens feitos e não tinham tido mais nenhum irmão ou irmã, e mesmo que os não pudessem ter mais, por haverem morrido seus pais, ainda assim entravam no rol: se eram os primeiros filhos, se antes deles não tinha nascido nenhum, era o quanto bastava para serem irrevogáveis primogênitos e, como tais, condenados à exterminação.
Esta era a significação da palavra bekor ou primogênito entre os hebreus: o primeiro que nasce, independentemente da consideração se depois dele nasceram outros ou não. Uma antiga inscrição judia encontrada em Tell-el-Yedouhieh, fala-nos de uma jovem mulher chamada Arsinoé que morreu “entre as dores do parto do seu filho primogênito”. Aliás, o mesmo se poderia dizer em nossa língua, sem que nisto houvesse nenhuma falta de lógica, uma vez que não repugna que haja primeiro sem segundo, porque alguém pode dizer, por exemplo:
-Este foi o meu primeiro discurso, aliás primeiro e último, porque não falarei mais em público.
Como se vê, a noção de primeiro e a noção de último não implicam necessariamente uma contradição.
E fazendo ressaltar em Jesus a sua qualidade de primogênito, o evangelista quer relembrar apenas que pela lei mosaica Ele era, como todos os outros, consagrado a Deus.
José não conheceu Maria até...
São Mateus, na tradução da Vulgata do Pe. Figueiredo, referindo-se a São José (Mateus I, 25):
E ele não a conheceu enquanto ela não deu à luz o seu primogênito; e Lhe pôs por nome Jesus.
Ferreira de Almeida e o Pe. Matos Soares apresentam a conjunção subordinativa de modo ainda mais conforme ao texto grego e ao latim da Vulgata:
Ferreira de Almeida: E não a conheceu até que deu à luz seu filho, o primogênito; e pôs-lhe por nome Jesus.
Pe. Matos Soares: E não a conhecia até que deu à luz seu filho, primogênito; e pôs-lhe o nome de Jesus.
Não há dúvida que isto dito assim em nossa língua parece dar a entender que José a conheceu depois; mas a questão está em saber se no modo de falar dos hebreus daquele tempo, se no modo de falar da Bíblia se tira esta conclusão. E aí se vê o perigo de pôr-se a Bíblia, um conjunto de livros escritos há tantos séculos e apresentando uma linguagem bem diversa da nossa, nas mãos de qualquer pessoa, com o direito de interpretá-la como lhe vem a cabeça, sem ter o conhecimento da índole das línguas antigas ou distorcendo tal índole para enquadrá-la nos seus “achismos”.
Segundo o modo de falar dos hebreus (e São Mateus é um hebreu da gema; aliás, escreveu o Evangelho na sua própria língua, sendo o texto grego uma tradução e quem traduz a Escritura, no método tradicional, o faz palavra por palavra, para respeitar o texto sagrado, fora que é certo que o grego do Novo Testamento está repleto de hebraísmos), segundo o modo de falar das línguas semíticas:
Não a conheceu enquanto ela não deu à luz
Não a conheceu até que ela deu à luz
quer dizer simplesmente isto: sem que a tivesse conhecido, ela deu à luz – sem nenhuma preocupação com o que aconteceu ou não aconteceu depois.
Vejamos o Gênesis.
Houve um dilúvio em que caiu sobre a terra quarenta dias e quarenta noites (Gênesis VII, 12). As águas cresceram e engrossaram prodigiosamente por cima da terra, e todos os mais elevados montes que há debaixo do Céu ficaram cobertos; tendo a água chegado ao cume dos montes, elevou-se ainda por cima deles quinze côvados (Gênesis VII, 19 e 20). E as águas tiveram a terra coberta cento e cinqüenta dias (Gênesis VII, 24).
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Noé e os seus estão na arca. Depois de 150 dias começaram as agias a diminuir: E as águas... começaram a diminuir-se depois de cento e cinqüenta dias (Gênesis VIII, 3). É natural agora, portanto, a curiosidade de Noé em saber a marcha em que se vai processando esta diminuição das águas e quanto tempo mais ou menos irá durar aquela moradia dentro da arca, que por certo não devia ser lá muito cômoda.
Solta então um corvo que não volta mais (Gênesis VIII, 7).
Solta depois uma pomba que, não achando onde pousar, volta bem depressa para a arca (Gênesis VIII, 9).
Sete dias depois, solta outra pomba e esta volta para Noé sobre a tarde, trazendo no seu bico um ramo de oliveira com as folhas verdes (Gênesis VIII, 11). É já um bom sinal; espera Noé mais sete dias e solta outra pomba que não torna mais a ele (Gênesis VIII, 12).
O corvo não se mostrou bom mensageiro; enrascou-se no meio das águas e não acertou o caminho para voltar. Daí o ditado entre os hebreus de chamar “corvo” o mensageiro ao portador que não dá conta do recado.
Pois bem, em lugar de dizer, como nós diríamos, que a arca pousou em terra, sem que o corvo tivesse voltado, a Escritura diz da seguinte maneira: abriu Noé a janela que tinha feito na arca e soltou um corvo, o qual saiu e não tornou mais, até que as águas que estavam sobre a terra se secaram (Gênesis VIII, 6 e 7).
Ora, é evidente que o corvo não voltou mais à arca, depois que ela pousou em terra; nem isto interessa mais ao narrador, que quis mostrar apenas a marcha dos acontecimentos enquanto estavam na arca. Mas é o modo de falar deles naquele tempo. Assim também, em vez de dizer: Maria deu à luz, sem que José a tivesse conhecido. São Mateus diz que José não a conheceu, até que ela deu à luz. O que interessa ao narrador no caso é simplesmente mostrar que a concepção de Jesus foi virginal.
Mas vamos a outros exemplos.
Em vez de dizer: Reduzirás a pó os reis, sem que ninguém te possa resistir, a Bíblia diz: Entregar-te-á nas tuas mãos os seus reis, e fará que não fique memória de seus nomes debaixo do Céu; ninguém te poderá resistir, até que os tenhais feito pó (Deuteronômio VII, 24). É claro que, depois de reduzidos a pó os reis, com maior razão ninguém poderá resistir. Mas este é o modo de falar daquele povo: ninguém resistirá até que os tenhais feito pó.
Em vez de dizer: Micol, filha de Saul, morreu sem ter tido filhos, a Bíblia diz: Micol, filha de Saul, não teve filhos até o dia da sua morte (II Reis VI, 23).
Em vez de dizer: Morrereis, sem que esta iniqüidade vos seja perdoada, Isaías diz: Não se vos perdoará por certo esta iniqüidade até que morrais, diz o Senhor Deus dos exercécitos (Isaías XII, 14). Vê-se muito bem que Deus não quer dizer aí que, depois de mortos, vai dar-lhes o perdão; mas sim que morrerão sem alcança-lo. E no mesmo profeta Isaías, em vez de dizer: Estabelecerá a justiça sobre a terra, sem precisar ser triste nem turbulento, se diz assim: Não será triste nem turbulento, até que estabeleça na terra a justiça (Isaías XLII, 4). É evidente que, se o libertador de Israel não foi triste nem turbulento antes do estabelecimento da justiça, muito menos o será depois de estabelecê-la. Mas este é o estilo da Bíblia. O até que, e o enquanto não, não tem na Escritura Sagrada o mesmo sentido que têm na nossa linguagem comum, não exprimem absolutamente uma restrição. Não há, portanto, restrição à virgindade de Maria naquela frase de São Mateus.
José não conhecer Maria, até que ela deu à luz o seu filho. quer dizer simplesmente, segundo o modo de falar das escrituras, a afirmação de que Maria Santíssima era virgem por ocasião de seu abençoado parto; esta afirmação absolutamente não é destruída por esta outra que também é verdadeira: Maria continuou virgem a sua vida, até que morreu; o que, por sua vez, também não quer dizer que ela tenha perdido a virgindade depois da morte.
Sant'Ana não teve contato com a carne de Nosso Senhor. E Maria foi pura desde a concepção por um privilégio da graça de Deus, não porque houvesse uma necessidade de meio para que ela fosse mãe do Salvador.
Santo Tomás admite que Maria estivesse livre do fomes (concupiscência) no momento da concepção de Cristo, não porque isso fosse necessário com necessidade de meio, mas por causa da influência de Cristo sobre ela.*
Contudo, ainda segundo o Angélico, Maria precisava ser idônea para dar à luz Cristo, no sentido de ser livre do pecado original, embora não me pareça que isso fosse de necessidade absoluta, já que Santo Tomás admite que a matéria da qual foi concebido o corpo de Cristo estivesse sujeita ao pecado no corpo dos Patriarcas (S. Th., IIIa, q.31, a.7).
(*) Santo Tomás, embora pensasse que o fomes não estava extinto na Santíssima Virgem antes da concepção de Cristo, diz que o mesmo estava ligado. Hoje, os teólogos já não defendem mais que o fomes existiu na Santíssima Virgem, ainda que o dogma da Imaculada Conceição não force essa conclusão. Mas, de certo, existiram nela algumas imperfeições ou misérias das quais ela só foi livre no estado de glorificação (posto que nem Seu Filho delas foi poupado).
Maria não esteve sujeita ao pecado original, mas esteve sujeita às misérias da natureza decaída e já restaurada pela graça. Não foi criada no mesmo estado de perfeição dos primeiros pais, que não estavam sujeitos à dor e à morte, embora alguns aleguem, com base em Santo Tomás, que não se deve negar à Virgem as perfeições que outros santos receberam. Na minha opinião, contudo, essa regra deve estar relacionada ao estado de natureza dos santos após o pecado original.
Maria, como toda a descendência de Adão, esteve sujeita ao débito do pecado, contudo, por um privilégio especial, não esteve sujeita ao pecado em si mesmo. Em outras palavras, ela precisou da Redenção.
Se a Virgem Maria foi concebida sem pecado, é dogma. Mas, em que estado de natureza exatamente foi concebida?
Santo Tomás dizia que o fomes peccati existiu em Maria ligado, mas não extinto até a hora da Encarnação. Essa também é a opinião de muitos teólogos que negaram a Imaculada Conceição até a sua definição pela Igreja. Tal opinião, no entanto, é difícil de se sustentar após a proclamação do dogma. Todavia, parece que, mesmo tendo sido concebida sem nenhuma mancha do pecado original, Maria não teve a plenitude do estado de justiça original concedido a Adão antes da queda: não teve ela a imortalidade, nem a ciência infusa, nem a impassibilidade. Como entender isto? Maria teria renunciado a esses dons, para melhor se assemelhar a Cristo?
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De acordo com uma explicação colhida da obra Suma de la Sagrada Teología Escolástica, dos padres jesuítas, Maria não foi criada no exato estado de justiça original, porque o estado concedido à Virgem não se dá em virtude da primeira elevação (aquela de Adão), mas em virtude da segunda elevação (por intermédio de Cristo), porque Maria teve débito de pecar, débito este que foi redimido pelos méritos de Cristo, antecipadamente, mas ainda assim dependente da redenção de Cristo. Isto explicaria o estado singular em que Maria foi criada, diferente tanto da justiça original, quanto do estado de natureza caída e reparada dos demais santos.
Só para elucidar a questão de Santo Tomás e a Imaculada Conceição tratado acima, o Doutor Angélico ensina que Maria foi santificada ainda no ventre materno, à semelhança de Jeremias e João Batista (S. Th., III, 27, a.1), e permaneceu a vida toda sem pecar (a.4). Só que a santificação de Maria no ventre de Ana deu-se após a animação, logo, depois de ter ligeiramente contraído o pecado original (a.2).
Quanto ao fomes peccati, Santo Tomás ensina que essa imperfeição existiu de fato em Maria até o momento da Encarnação, quando foi totalmente extinto no seu ser. Todavia, mesmo antes, em virtude da plenitude da graça que Maria recebeu no seio materno de Sant' Ana, ela foi impedida de manifestar essa imperfeição, de forma que ela nunca veio a praticar nenhum ato pecaminoso após a sua santificação no útero materno (a.3).
A Bula que definiu o dogma da Imaculada Conceição, do Papa Pio IX, em 1854, parece excluir o fomes peccati em Maria, porque não admite nela imperfeição alguma, apesar de não se saber se isto de alguma forma está implícito em sua definição dogmática.
Fomes peccati é um termo usado pelos teólogos para a concupiscência desordenada habitual. Não se trata de um pecado, de acordo com a definição do Concílio de Trento, mas de uma imperfeição que teve origem no pecado e que inclina ao pecado. Mesmo depois do batismo, o fomes peccati persiste e é deixado como que para a luta (D 792).
O fomes é a concupiscência desordenada habitual do apetite sensitivo, porque a concupiscência atual é o impulso do pecado.
Em alguns santos, o fomes permanece ligado: não se pode manifestar em atos contrários à razão por uma remoção extrínseca das ocasiões ou denegação do concurso divino. Este também pode estar extinto, como no caso de justiça original.
Se Nossa Senhora foi concebida sem pecado original, as consequências do pecado original se aplicam a Ela? Adão e Eva tinham ausência de concupiscência, impassibilidade e imortalidade, atributos corporais. Também tinham ciência, vontade e sensibilidade perfeitas, atributos da alma.
As discussões se referem aos atributos corporais de Nossa Senhora, e não há nenhum consenso teológico acerca do tema.
Sobre os atributos acerca dos atributos de Sua alma: se Ela, por consequência de sua não submissão ao pecado original, permaneceu tal qual Adão e Eva antes do pecado, ou seja, com ciência, vontade e sensibilidade perfeitas, porque assim sendo, Ela teria também impassibilidade, imortalidade e ausência de concupiscência, uma vez que os atributos temporais decorrem dos imortais.
Se Nossa Senhora foi preservada do pecado original, como primeira consequência temos ausência de concupiscência, ou seja, tal qual como Adão e Eva, Ela só pecaria por livre e espontânea vontade, sem qualquer tendência para fazê-lo, ou seja, Nossa Senhora não teria uma sensibilidade desordenada, mas perfeita (claro, perfeita no grau humano, e não no grau divino, perfeitíssimo, pois só o Verbo de Deus teve estes atributos assim concedidos).
Quanto à vontade, Cristo afirma “Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe.” (Mt XII, 50). Ela fez a vontade de Deus no fiat (Lc I, 38) e nos manda fazê-la (Jo II, 5), ou seja, teria vontade perfeita, pois a vontade de Deus está acima da Dela. Quanto à ciência, a Virgem não entende como se fará a concepção sem conjunção carnal (Lc I, 34) e também não entende quando Jesus se perde no Templo aos 12 anos (Lc II, 48-50)
Deste modo, teríamos em Nossa Senhora vontade e sensibilidade perfeitas e ciência imperfeita?
Todo homem, mesmo em estado de pecado, possui razão, vontade e sensibilidade perfeitas, pois tais potências fazem parte de sua essência. O que ocorre é que, acidentalmente, tais potências venham a ser inibidas, por conta dos hábitos pecaminosos.
O que ocorreu, após a queda do homem, foi a insubmissão do apetite sensível à razão. Se, antes, a concupiscência e a ira estavam totalmente submetidas à razão, após o pecado, elas, às vezes, prevalecem sobre a razão.
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Com respeito à Virgem Maria, é sentença comum que ela teve imunidade de concupiscência desregrada. A Bula que define a Imaculada Conceição, no entanto, não define sobre isso também, apenas sobre a mancha do pecado original. Santo Tomás pensara que a concupiscência estivesse controlada por meios extrínsecos até o momento da Anunciação, quando ela foi finalmente posta sob a razão. Hoje, essa opinião não é comum, embora não seja herética. O importante é que Maria nunca pecou.
Quando à imunidade corporal da Virgem Maria, ela não é defendida pela maioria dos teólogos. Ao contrário, a sentença mais comum é que tenha sofrido a morte corporal, não por castigo, mas porque era conveniente que o corpo de Maria se submetesse à lei universal da morte, conformando-se assim totalmente a seu Filho.
Pode haver uma hipótese de que Maria morreu por causa do pecado original, embora não como castigo do pecado original. Enquanto os homens morrem como castigo do pecado original, Maria morreu, ao menos, enquanto consequência indireta de ter havido aquele primeiro pecado.
Com respeito à ciência infusa, alguns teólogos a admitem para Maria, mas eu não vejo conveniência em que Maria a tivesse. De acordo com certos teólogos, tal dom convinha somente a nossos primeiros pais, e não seria transmitido à sua descendência, caso não houvesse pecado.
Ademais, segundo Santo Tomás, Adão foi instruído em todo o conhecimento possível ao homem saber através da investigação e que fosse necessário para o governo da vida humana (S. Th., I, q.94, a.3). Não sabia, porém, aquilo que era inútil (por exemplo, quantas pedrinhas há no leito de um rio), ou o que era impossível saber através da investigação (p. ex., os futuros contingentes ou os pensamentos dos outros homens).
A ciência infusa é geralmente admitida para aqueles teólogos que dizem que Maria teve o mérito sobrenatural desde a sua concepção. Para que houvesse o mérito sobrenatural, seria necessário que ela tivesse já o uso da razão desde a sua concepção.
Cristo, por sua vez, em razão de sua natureza humana, teve a ciência infusa.
Obs.: A ciência infusa referida na mensagem acima é a ciência infusa a modo permanente. Há graus diferentes desse mesmo dom, pois a ciência infusa que teve a natureza humana de Cristo é superior à de Adão ou mesmo dos anjos.
Maria certamente teve a ciência infusa procedentes dos dons intelectivos do Espírito Santo e em plano extraordinário ou carismático, luzes especialíssimas sobre o mistério da Encarnação e o papel excepcional que Ela mesma haveria de desempenhar no mistério redentor como Co-redentora da humanidade (Mons. João Clá Dias).
A razão, a vontade e a sensibilidade não eram aperfeiçoadas pelos dons preternaturais. Assim, essas potências continuam a atuar perfeitamente no homem, para o fim que foram criadas. São potências da alma humana. É isso o que eu quis dizer.
Os dons preternaturais apenas colocavam a sensibilidade sob o completo domínio da razão, e isso não é perfeccionar nem a sensibilidade, nem a razão, isoladamente, mas o homem no seu conjunto. Já a impassibilidade é uma perfeição adicionada ao corpo humano, não à alma.
Se Nossa Senhora possuiu esses dons preternaturais, é o que eu discuto acima. De certo, o estado de natureza da Virgem não era o estado de justiça original. Correspondia a uma nova e peculiar elevação (dependente dos méritos de Cristo), até para que ela melhor pudesse, com seus padecimentos, ser nossa Corredentora.