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O conhecimento intuitivo existe e sempre foi objeto da reflexão teológica ou filosófica (vide, por exemplo, a prova da existência de Deus de Santo Anselmo.
Embora, diga-se de passagem, a prova da existência de Deus de Santo Anselmo tenha sido devidamente refutada por Santo Tomás e outros pensadores, como Kant. O nosso pensamento não cria a realidade, e não é porque pensamos num ser perfeito, que ele tem necessariamente que existir. A inteligência humana não pode ascender naturalmente à essência de Deus, logo, qualquer ideia que tenhamos de um ser perfeito não pode provir senão da analogia das criaturas. Acreditar, portanto, que, pensar num ser perfeito é concebê-lo como existente é pura ingenuidade.
O argumento de Santo Anselmo chega a ser infantil. Onde é que o pensamento cria a realidade? Eu desafio qualquer um a provar tal argumento. Defendê-lo é fazer a apologética cristã cair no ridículo. Bertrand Russell, que era ateu, chegou a dizer que o argumento de Sto. Anselmo era um caso de má gramática.
Além disso, há muitas coisas que eu considero definitivas, e eu não vejo problema algum nisso. Para quem não conhece o argumento de Santo Anselmo: Deus tem que existir porque, se eu penso num ser perfeito, esse ser não seria perfeito caso não tivesse existência. Logo, eu não posso pensar num ser perfeito, se ele não existe. Como eu disse, o que pensamos provém do conhecimento que temos pelas percepções dos sentidos, e não o contrário, como supõe o argumento. A realidade cria o nosso pensamento, e não o nosso pensamento que cria a realidade.
O fato de muita gente boa achar que o argumento ontológico de Santo Anselmo é válido, para mim, é uma falácia de autoridade, e a autoridade é argumento válido para a Teologia, nunca para a Filosofia. Em Filosofia, temos que provar, demonstrar à luz do intelecto.
O argumento de Santo Anselmo desconsidera que o intelecto humano é analógico e não sintético. O homem é capaz de pensar coisas contraditórias, como um círculo quadrado, ainda mais quando tem delas uma ideia vaga. É o caso de pensar num ser perfeitíssimo. Não se tem disso mais do que uma ideia vaga, que surge unicamente da negação das imperfeições das criaturas. Se não tiver outra base além do intelecto, não passa de uma quimera, no sentido mitológico mesmo (a Quimera era um monstro, com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente).
Dan Barker, ateu, diz que basta substituir a palavra “ser” e “Deus” no argumento anselmiano e provar a existência do vácuo perfeito, ou seja, do nada. Eu não acho a sua crítica pueril, embora não tenha me embasado nela. Se a realidade tem que se adequar ao nosso pensamento, por que o argumento só tem valor se pensamos na perfeição absoluta? A perfeição absoluta não é alcançada pela nossa inteligência. Se ela fosse alcançada, como acontece com os bem-aventurados, o argumento seria válido, mas ela aqui só é pensada por negação arbitrária dos limites das criaturas. Uma vez estabelecida a existência de Deus a posteriori, aí podemos usar a analogia para conhecer os atributos positivos e negativos da Divindade.
Uma crítica à refutação de Kant pode ser lida aqui:
A ideia do noumenon é uma de suas petições de princípio, que ele usa para refutar o princípio de inteligibilidade, mas, sem esse princípio, não se tem sequer como postular a existência do talnoumenon. Além disso, ele supõe que as leis do pensamento são as mesmas em todos os homens, apesar de julgar a inteligência humana fechada em suas próprias percepções, sem ter acesso ao noumenon.
Bem, o Olavo começa a mencionar a crítica de Kant ao argumento ontológico justamente onde está embasada no noumenon, isto é, na realidade inacessível à mente humana:
“Kant objeta que os juízos analíticos têm validade puramente racional e não se aplicam aos seres do domínio real, que só podem ser conhecidos por experiência: existir é existir "fora" do pensamento, e portanto a existência nunca pode ser deduzida do mero conceito.”
Mais adiante, contudo, parece que ele confunde as coisas. Ele diz que, para que o argumento ontológico não passe de mera hipótese, a necessidade hipotética teria, obrigatoriamente, que ser necessariamente hipotética, o que resultaria numa contradição: ou é necessidade ou não é. Essa crítica não tem valor justamente pelo que falei acima: a inteligência humana é capaz, sim, de pensar o contraditório. Podemos pensar num círculo quadrado, mas acredito que existam outros absurdos ainda mais fáceis de se pensar.
Quando pensamos no mal como um ser, estamos pensamos em algo contraditório, dado que o nosso entendimento é analítico. Ele considera as partes de algo e só com reflexão mais profunda, percebe a contradição. O mesmo caso poderia se dar no caso de alguém que pense num ser perfeito e existente. Não significa dizer que o ser perfeito não exista, mas sim que tal pessoa pensou num ser perfeito, sem ter certeza de sua existência, e depois o pensou existente. A contradição aqui é entre necessidade e contingência, justamente aquela que Olavo supõe não existir, mas ela existe, pois estamos tratando do pensamento humano, que não concebe as coisas de forma simples, fechada. É construído, moldado pelas imagens que retira do real.
Aqui outro texto, agora sobre a maneira como Mário Ferreira dos Santos via o argumento de Santo Anselmo
Mais um, na mesma perspectiva do anterior
Um trecho desse último que postei só para incentivar a leitura:
“A negativa tem validade lógica, formal, opondo-se, neste âmbito, à proposição afirmativa; mas, no sentido concreto e real, ao dizer que não estou aqui, apenas passo a adicionar novas informações que comprovam justamente a afirmativa. Isto porque ao dizer que “eu não estou aqui” assim procedo porque “estou aqui” para poder dizê-lo, e é por isso que posso afirmar realmente a primeira proposição com a sua negativa formal. Há uma complementação predicativa da proposição por sua negativa e, então, em sentido concreto, o “eu estou” é irrefutável. Da mesma forma, matizando o argumento ontológico de Santo Anselmo, dá-se a proposição “Há Deus”. Considerando Deus como o ser do qual não se pode pensar nada maior, ao pensá-lo, portanto, estamos a conceber tal ser. É certo que este ser não pode ser apenas mental, ou seja, mera criação de minha cabeça, isto porque, se assim o fosse, eu acabaria por contê-lo em meu raciocínio. Conter significa limitar, mas este ser maior possível é ilimitado, logo, não posso negar que ele é maior do que eu mesmo e está além de todos os limites de minha razão. Negar Deus é conceber um ser maior possível (pois só se nega o que antes se concebeu), e, negá-lo é, neste caso, como no exemplo acima, justamente afirmá-lo.”
O primeiro texto, que é longo, já começa supondo que a inteligência humana pode alcançar a realidade transcendente, o que seria a essência divina. Só isso seria a negação do que a teologia católica ensina sobre o dom sobrenatural dos bem-aventurados:
“Segundo todos os objetores, o argumento de Santo Anselmo apenas prova a realidade na ideia, e não a realidade em si. Mas, perguntamos, que realidade se deseja considerar? A nossa realidade empírica, física, ou uma realidade transfísica? Se queremos uma realidade empírica, física, é lógico que o ser, que nada de maior pode ser concebido, não a terá, pois, se a tivesse, não seria o ser que nada de maior se pode conceber. Portanto, a única realidade que lhe resta será uma transfísica e, nesse caso, transcendental, a realidade de Deus.” (Mário Ferreira dos Santos – O Homem Perante o Infinito. p 88)
Há quem não entenda nesse trecho uma defesa de que se pode alcançar a essência divina. Falar da realidade de Deus não é o mesmo que falar da essência de Deus. Mas, de qualquer forma, creio que o passo para a teologia deve ser dado após uma refutação ou aceitação no campo filosófico mesmo.
A nossa inteligência não alcança, diretamente, nenhuma realidade transfísica. O autor teria que provar isso, do contrário, temos uma petição de princípio.
No final do artigo:
“Com isso, Mário mostra a improcedência da objeção feita ao argumento anselmiano de que há nele um indevido salto do ontológico para o lógico: é a necessidade absoluta do ser que permite a cogitação humana e lógica, pois, do contrário, nada haveria. Em outras palavras, o homem sequer poderia duvidar do Ser se este Ser não existisse. Não é pelo fato do homem pensar no ser necessário que este ser existe, é pelo fato desse ser existir, como origem e sustentáculo de toda a realidade, que o homem pode cogitar este ser.”
Isso só teria validade se Deus iluminasse a inteligência diretamente, mas, embora isso possa ocorrer, o argumento anselmiano é um esforço da razão com base no sensível, e não uma revelação natural ou sobrenatural.
“Um ser hipoteticamente necessário (o ser que pode ou não pode ser necessário) é impossível, pois, caso se verifique que ele realmente é necessário, se verificará, automaticamente, que ele não é hipotético. Ao ser absolutamente necessário faz-se necessária sua existência antes mesmo da formulação de sua hipótese, pois tal hipótese não agiria como hipótese, uma vez que admite pela sua própria exposição ser impossível que seja somente uma hipótese. Logo, a existência do ser absolutamente necessário não é admissível pensar como hipotética, pois foi este próprio pensamento que se mostrou absurdo e se auto-refutou. Esta é a defesa de Mário.”
Aqui o autor diz exatamente o mesmo que o texto do Olavo, e eu reitero a minha resposta a este: a inteligência humana não se dá num processo simples, mas analógico, portanto, é capaz sim, de sentenças contraditórias, para as quais não considerou ao mesmo tempo todas as incoerências. Pensando mais profundamente, e, a posteriori, ele tem ciência das contradições.
Certamente ele teria de provar isso, mas, mesmo assim, não temos uma afirmação sobre o conhecimento da essência de Deus.
O homem não alcança Deus diretamente nem quando pensa num ser perfeitíssimo. Na verdade, quando o homem pensa num ser perfeitíssimo, ele primeiro pensou nas criaturas, e aplicou o processo de analogia, pois já conhecia Deus mediante a fé. É a fé que disse para Anselmo que Deus é um ser perfeitíssimo. Logo, se o argumento se propõe a provar algo racionalmente, ele já começa contradizendo-se ao se sustentar no claro-escuro da fé.
Deus é, de fato, um ser perfeitíssimo, mas só temos ciência de Sua necessidade, na medida em que conhecemos a falta de autossuficiência das criaturas. Fora isso, postular a necessidade de Deus não faz qualquer sentido. Seria uma necessidade fabricada pelo nosso intelecto.
Mais um textinho (agora entrando de maneira direta no acolhimento da intuição):
9. Que a prova de Sto. Anselmo é auto-evidente e necessariamente verdadeira
1. Um ser absolutamente necessário existe necessariamente, diz a prova de Sto. Anselmo.
2. A objeção de Kant é que o ser assim definido é definido por nós, portanto sua existência é hipotética, fundando-se na suposição — feita por nós — de que o ser nela definido é absolutamente necessário.
2. A contraditória é “Um ser absolutamente necessário não existe necessariamente” ou “Um ser absolutamente necessário necessariamente inexiste?” Sendo impossível decidir, é proposição equívoca e não tem sentido.
3. Logo, a prova de Sto. Anselmo é auto-evidente.
4. Não havendo auto-evidência hipotética (7:1-5), a prova de Sto. Anselmo é necessariamente verdadeira.
Esse trecho diz a absolutamente a mesma coisa que o primeiro texto. Os textos são bem longos, então, não tenho como dar uma refutação de cada linha ou mesmo parágrafo. Se tiver algum trecho que você queira que eu leia com mais atenção, é só me alertar.
Não se nega a contraditória apontada pelo Olavo. Ela é possível no intelecto humano, pois o intelecto humano é capaz de pensar num ser perfeitíssimo sem considerar de imediato a sua existência. E a realidade não está abarcada necessariamente numa formulação da mente humana. Isso seria atribuir mais inteligibilidade do que a inteligibilidade que o intelecto humano é capaz de alcançar num único ato.
O argumento de Gaunilo contra Santo Anselmo não é todo desprovido de validade, unicamente pelo fato dele ter substituído Deus por algo contingente. Quando penso numa ilha paradisíaca, eu não considero imediatamente a sua existência. Da mesma forma, alguém não considera de imediato a existência de um ser perfeitíssimo, quando pensa num ser perfeitíssimo, por mais que seja contraditório um ser perfeitíssimo não existir. O que está em jogo aqui não é o Ser perfeitíssimo, mas a ideia que eu tenho dele, que não são idênticos. Pensar num ser perfeitíssimo não é o próprio Ser perfeitíssimo.
O pensamento é uma pálida figura da realidade, e o homem só pode pensar num ser perfeitíssimo a partir da realidade que conhece e não de Deus, negando os limites sem considerá-los senão genericamente. Assim, esse ser perfeitíssimo pode ser concebido intencionalmente mesmo quando o indivíduo ainda não pensou severamente em todos os limites que precisa negar, pois ele já contempla o resultado final antes de terminado o processo do raciocínio. Somente ao final do raciocínio, irá pensar em tal ser como existente, mas da mesma maneira como podemos pensar numa pedra como existente ou não existente, sem que isso implique em contradição, não é o fato de termos intencionalmente elegido esse ser como perfeito que o fará existente. Esse ser só continua a existir na nossa intenção, que é o alvo a se buscar, e não o resultado pronto, acabado.
Os defensores do argumento anselmiano simplificam demais o pensamento humano a ponto de comparar-se mesmo com a inteligência angélica, atribuem maior inteligibilidade do que ele capaz num ato simples.
O negócio rende até hoje, e que não é estranho ao cristianismo. Inclusive, nem a definição do Vaticano I de que a existência de Deus é conhecida à luz da razão humana pretendeu obrigar alguém a preferir as provas tomistas ao argumento de Santo Anselmo. Mas eu tenho direito a ter a minha opinião firme, como pessoa que já pensou sobre o assunto, e que já leu e assimilou o que outros pensaram.
O conhecimento intuitivo aqui nesta vida é possível, mas não é normal (não digo nem natural) ao homem. É o modo normal de conhecer das almas separadas e dos anjos. Nada impede, contudo, que, mesmo no campo do natural, existam outras formas de conhecimento. No campo do sobrenatural, dá-se o conhecimento intuitivo por meio da ciência infusa sobrenaturalmente.
Uma dificuldade que eu penso ter encontrado no argumento de Santo Anselmo e ela é tão simples, que eu não sei como não pode ser notada logo de cara, seria a seguinte: sempre temos uma ideia de Deus menor do que Deus realmente é. Como bem lembrou o Daniel, somente Deus pode ter uma ideia de Si mesmo idêntica ao que Ele realmente é. Isso se dá pelo fato de que nós não podemos compreender o infinito em si mesmo. O entendimento que nós temos do infinito é sempre negativo, no sentido da negação do limite, mas nunca um entendimento positivo. Assim, quando falamos de um ser infinitamente perfeito, esse infinitamente perfeito, de si, sempre será como um “infinito potencial”, nunca um “infinito atual”, que se obrigue a existir. Não que a nossa mente esteja em potência em relação ao infinito atual, mas sim que ela não é capaz senão de pensar num infinito potencial. Temos dificuldade em entender mesmo a enormidade, sem simplificá-la ao máximo, por exemplo, quando pensamos no tamanho do Universo, então, quem dirá o infinito?
A ideia que eu tenho de conhecimento intuitivo provém desse conhecimento que existe nos anjos, pois se diz que eles têm a intuição direta das essências (http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2009/01/o-homem-transformado-em-anjo-i.html), mas, pelo que andei pesquisando, parece que alguns filósofos atribuem outros significados a expressão, dentro mesmo da forma normal de conhecimento humano, que é abstrair as espécies inteligíveis das sensíveis.
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