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Syllabus e sua proposição 80ª


Muito se discute, ainda, a aparente contrariedade que teria alguns documentos do Vaticano II e algumas declarações papais em relação ao documento Syllabus, de Pio IX, contendo os principais erros da época em que foi publicada. Sobre a liberdade religiosa já há um bom trabalho traduzido por nós nesse espaço (que poderás ler aqui). A falta de ciência das circunstâncias históricas da publicação junto com a mesma ignorância a quem se referem às condenações podem mesmo confundir os incautos. É básico que toda condenação de idéias tem que se referir a aqueles que as disseminam, sendo assim, o próprio vocabulário utilizado tem por definição o que têm em mente os condenados. Aliás, a carta do Cardeal Antonelli que acompanhava o documento já dizia explicitamente que as proposições do Syllabus deviam ser interpretadas em função dos documentos pontifícios anteriores de que foram tiradas.
Uma das proposições levantadas que seria supostamente uma condenação contraposta a Constituição pastoral “Gaudium et Spes” do Concílio Vaticano II e declarações dos Papasconciliares é esta:
“80º O Pontífice Romano pode e deve conciliar-se e transigir com o progresso, com o Liberalismo e com a Civilização moderna” (condenada no Syllabus)

Como falei, é absurdo querer entendê-la singularmente. Deste modo, poderia se cair em um grotesco erro de dizer que o Pontífice Romano é contrário ao progresso e a civilização, o que entraria em choque com tudo aquilo que a Igreja sempre disse anteriormente e posteriormente. Na realidade, na alocução de 18 de março de 1861, onde foi tirada a proposição em questão, o Papa exclamava que se lhe pedia para conciliar-se “com o que eles chamam a civilização moderna e o liberalismo”, na realidade, além dos termos se ocultava as medidas contra os conventos em numerosos países da Europa e da América, os abusos contra os sacerdotes fiéis ao Papa, a exclusão de religiosos da vida pública, o apoio aos inimigos da Igreja, etc.

Desde a Revolução Francesa (1789) os levantes de cunho liberal, especialmente as várias
revoluções de 1848 e suas conseqüências, sempre que chegavam ao poder se apressavam em fazer legislações hostis à Igreja. É isto que devemos entender quando lemos a proposição condenada, ela se refere a esses abusos que se davam em várias partes do mundo. É o que ele mesmo expõe na Iamdum Cernimus (é mister ler essa alocução para entender o erro condenado):

“Mas querer definir o nome civilização a um sistema fabricado precisamente para debilitar e inclusive destruir a Igreja, jamais a Santa Sede e o Romano Pontífice poderia aliar-se com semelhante civilização”¹.

Como vemos, é uma civilização com princípios específicos, não é qualquer civilização, liberalismo e progresso, e a condenação, obviamente, já que trata de uma situação histórica, não poderia se referir a todas as épocas, caso as medidas contra a Igreja cessassem, ou, ao menos, não fosse uso corrente aplicara palavra aos agressores da Madre Igreja. Então, por civilização se entende um sistema agressivo à Igreja. É óbvio que a Gaudium et Spes e os Papas conciliares não quiseram fazerpacto com esse tipo de perversão. É de se notar que o próprio título da parte em questão alude a isso, está escrito: “Errores ad liberalismum hodiernum pertinentes” ou “Errores, qui ad liberarismum hodiernum referuntur”, isto é, “erros referente ao liberalismo moderno”. No documento supracitado é devidamente explicado a que civilização, liberalismo e progresso ele se refere,pois vejamos:

“Esta civilização moderna (...)se ira contra as ordens religiosas, contra as instituições educativas católicas fundadas para a juventude, contra muitos clérigos em todos os níveis, também revestidos de grandíssima dignidade, não poucos deles levam uma vida miserável no exílio ou na prisão ou na incerteza (...) Esta civilização concede benefícios para instituições não-católicas, a maioria apenas privou a Igreja de suas posses, e usa cada conselho e todos os artifícios para diminuir a saudável eficácia da própria Igreja (...) atos violentos e desumanos contra aqueles quepublicam boa escrita e exercícios (...)² “Mas a batalha contra o Pontificado Romano não só tende a privar a Santa Sé e o Pontífice Romano de todo o seu principado civil, mas também tenta minar e, se possível, remover completamentetoda a eficácia salvadora da Religião Católica: e, portanto, também a obra de Deus, o fruto da redenção, e daquela santíssima fé, que é o patrimônio mais precioso que recebemos do sacrifício inefável consumado no Calvário (...) Quantos bispos no exílio!”³.

E o mesmo faz menção a outro tipo de civilização,quando diz: “Na verdade, sempre foi patrona e defensora da verdadeiracivilização”.⁴ De modo que ou ele é contraditório ou se tratam de civilizações diferentes e ao mesmo tempo contrárias. Uma se opõe à Igreja em tudo e dificulta sua ação e a outra concede seu direito à liberdade religiosa.

Ora, tudo isso não tem nada a ver com a Gaudium et Spes e os dizeres papais. Eles abraçam o gênero humano num sentido bem amplo, e foi o que sempre fez a Igreja.

Assim se lê na nota primeira da Gaudium et Spes: pretendeexpor as relações da Igreja com o mundo e os homens de hoje.” Não é a pretensão de fazer amizade com os detratores da religião, logo não tem nada a ver com o que condena a Syllabus. E para sermos honestos não poderíamos deixar de lembrar que ela faz duras críticas ao que corrompe a civilização humana (Cf. Gaudium et Spes, 27). No documento de convocação do Concílio, João XXIII diz:

“A Igreja assiste, hoje, a uma grave crise da sociedade (...) Trata-se, na verdade, de pôr o mundo moderno em contacto com as energias vivificadoras e perenes do Evangelho (...) Por isso, a sociedade moderna se caracteriza por um grande progresso material a que não corresponde igual progresso no campo moral.”⁵

Nunca a Igreja deixou de condenar os erros modernos. O Papa JoãoPaulo II foi pefeitamente claro sobre o tipo de civilização que a Igreja abomina:


"A civilização da morte quer destruir a pureza do coração. Um dos seus métodos de agir é pôr intencionalmente em dúvida o valor da atitude do homem, que definimos comovirtude da castidade. É um fenômeno de modo particular perigoso quando o objetivo do ataque são as consciências sensíveis das crianças e dos jovens. Uma civilização que, agindo desta forma, fere ou até aniquila uma relação corretaentre os homens, é uma civilização da morte, porque o homem não pode viver semo verdadeiro amor."

Não ter em consideração tudo aqui expresso, resultaria em não apenas atacar o Concílio Vaticano II e seus Papas, mas também o sucessor de Pio IX, Leão XIII, que diz: "(...) muitíssimo longe está, pois, que a Igreja de Jesus Cristo abomine a civilização e a repila, visto ser a si, pelo contrário, que ela crê caber inteiramente a honra de lhe haver sido a nutriz, a mestra e a mãe." 

É atacar o sucessor de Leão XIII, Pio X: 

“Por certo os inimigos da Igreja hão de valer-se disto, para de novo repisarem a velha acusação, com que procuram fazer-Nospassar por inimigos da ciência e dos progressos da civilização. A fim de opormos um novo desmentido a tais acusações, que são desfeitas a cada página da história da Igreja, é nosso propósito conceder todo o auxílio e proteção a uma nova Instituição, pela qual sob o influxo da verdade católica, será promovida toda a sorte de ciências e erudições, com o concurso dos católicos mais insignes no saber.”


É atacar o sucessor de Bento XV, Pio XI: 

Não há negar que o recreio corporal e espiritual, emsuas múItipIas manifestações do progresso moderno, tornou-se necessário para osque se cansam nas ocupações e cuidados da vida, mas ele deve ser digno e poristo são e moral; deve elevar-se ao nível de fator positivo de nobressentimentos.”⁹

E,por fim, atacar o sucessor de Pio XI, Pio XII:

“Assim as nações que dão, osEstados que recebem, contribuirão igualmente ao incremento do bem-estar humanoe ao progresso da civilização.”¹

Mas nestes casos, curiosamente, nenhum tradicionalista os acusará de modernistas, contrários “a infalível (?) Syllabus”, etc.

NOTAS:

¹ Iamdum Cernimus, IV.

² Iamdum Cernimus, III

³ Iamdum Cernimus, VI.

⁴ Iamdum Cernimus, IV.

⁵ Humanae Salutis, 3.

⁶ Homilia, Sandomierz, 12 de Junho de 1999.

⁷ Inscrutabili dei Consilio, 5.

⁸ Pascendi Dominici Gregi, conclusão.

⁹ Vigilanti Cura, 16.

¹⁰ Radiomensagem na solenidade de pentecostes 50° aniversário da carta encíclica "rerum novarum" de Leão XIII, 1° de junho de 1941, 25.
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PARA CITAR ESTE ARTIGO:

Nelson M. Sarmento, Syllabus e sua proposição 80ª, Porto Alegre, janeiro de 2012, blogue Apostolado Tradição em foco com Roma.


CRÍTICAS E CORREÇÕES SÃO BEM-VINDAS:
nelson.sarmento@gmail.com

 

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