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Imortalidade de Adão antes da queda questionada


Por Rui Ribeiro Machado

Para que Adão comia se não podia morrer de inanição? Adão respirava? Para que se não podia morrer por hipoxia? 
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Na verdade, é de fé que Adão era imortal, mas não está estabelecido que essa imortalidade fosse uma espécie de invulnerabilidade ou de incorruptibilidade. É certo que ele não morreria, mas isso envolvia uma série de circunstâncias decorrentes da vida no estado de justiça original, inclusive a própria ciência infusa de Adão aliada à Providência divina.

Santo Tomás, por exemplo, insinua que Adão se feriria caso se chocasse contra algo pontiagudo (S. Th., Ia, q.97, a.2, ad.4), e que morreria (passaria a uma vida espiritual) se deixasse de se alimentar da árvore da vida (a.4). Ele parece entender a imortalidade no sentido de que Adão não ficaria velho ou doente por algum processo natural de corrupção.

Ele tinha dons extraordinários, sobrenaturais, como a imortalidade, a imunidade de concupiscência desregrada, a impassibilidade, a ciência infusa. O dom da imortalidade é de fé divina e católica definida. Agora, eu não sei explicar de modo conveniente essa imortalidade, mas eu entendo que não era uma espécie de invulnerabilidade, mas sim uma imortalidade prática, dependente em parte de uma força anímica ligada à graça santificante, em parte da Providência, como Sto. Tomás parece ensinar.

Deus se comunicava diretamente com ele, como quando lhe impôs a ordem de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal e quando lhe trouxe os animais para que Adão lhes desse nomes. Agora, com respeito a suas outras perguntas, vou pesquisar a respeito. Parece-me, ainda, que o fim último do homem, isto é, a visão beatífica, não seria atingido se Adão não pecasse. Daí a expressão "felix culpa" (culpa feliz).

Ele não O via, pois Deus não pode ser visto com olhos humanos, mas só intelectualmente, por meio da visão beatífica. E Adão não tinha a visão beatífica, do contrário, não teria pecado. Certos homens, como Moisés e Paulo, e, provavelmente, também Santo Tomás [ Por causa daquela experiência mística que teve perante a qual disse que seus escritos eram como palha], tiveram a visão beatífica, não de modo imanente, como se dá nos bem-aventurados, mas a modo de paixão transeunte, nesta vida, mas eu não entendo muito a respeito. A teologia mística ou espiritual pode explicar melhor.

Não há distinção entre santos do Antigo e do Novo Testamento. O batismo é apenas a causa instrumental da graça e essa já existia no Antigo Testamento. Abraão foi salvo pela graça, por meio da fé. E Moisés viu a essência divina. O próprio Santo Tomás reconhece isso na Suma Teológica.

Nossa Senhora ficou livre da contração do pecado original pelos méritos de Cristo, mas não estava no mesmo estado dos primeiros pais, exceto com respeito à graça (que era maior do que aqueles tinham) e à imunidade de concupiscência desregrada. Como filha de Adão, ela teve o débito do pecado como todos nós, ainda que sem experimentar o pecado. Não acho que se deva buscar alguma razão para que Deus não a tivesse criado imortal ou impassível apenas na sua missão de Corredentora, mas porque aprouve a Deus colocá-la, de algum modo, em solidariedade conosco e com Seu Filho, e menor do que Cristo, inclusive na graça recebida em Sua Humanidade.

Mesmo que Nossa Senhora não tenha passado pela morte, é ponto inquestionável que sua carne era mortal, e que teria morrido se não fosse arrebatada aos céus. Seu corpo não tinha sido glorificado, nem sua alma, o que se prova pelo fato de não gozar, em vida, da Visão Beatífica. Não faria sentido uma alma não glorificada num corpo glorificado. 

Cristo, por outro lado, tinha uma alma glorificada num corpo não glorificado, e aí sim faz sentido, pois a alma é a parte mais importante do homem.

A visão da essência divina é possível em vida desde que de modo transeunte [ quer dizer de modo passageiro, sem que a glória esteja imanente e redunde na glorificação do ser em questão, mas somente em parte]. Essa era a opinião de Santo Agostinho e de Santo Tomás:


É dogma definido pela Igreja em concílios que não haveria morte sem o pecado. Melhor ainda: teriam a visão beatífica aqui mesmo, no Paraíso terrestre.

Mas eu não acho que dizer que Adão e Eva não teriam a visão beatífica sem que houvesse o pecado, seria fazer a visão beatífica fruto do pecado. Pois é doutrina certa, para mim, que Cristo só se encarnou por causa do pecado. E a Encarnação não é fruto do pecado, mas da misericórdia de Deus. Tudo estava incluído no plano divino desde a eternidade, e este plano incluía o pecado, a Encarnação como remédio do pecado e a visão beatífica como fruto da Encarnação.

Santo Tomás ensina que as obras de Adão eram tão meritórias quanto as nossas. Logo, ele merecia o céu, como as almas dos que morreram em estado de graça antes de Cristo o mereciam. No entanto, os meios para que chegassem ao céu foram aqueles proporcionados pela Providência e não outros. Como Deus é Aquele que determina o fim do estado de merecer e desmerecer, não me parece haver obstáculo em que a situação final de Adão permanecesse indefinida até que este houvesse pecado.

Santo Tomás ensina que o que não encontra provas na Revelação, não pode ser defendido. No caso, a Encarnação como resultado do pecado não configura nenhuma vitória de Satanás, pois até os atos de Satanás estão nos planos de Deus. Antes, revela a imensa sabedoria de Deus e reflete as palavras do Apóstolo: onde abundou o pecado, superabundou a graça.

Com respeito a Adão, a teologia está acostumada mesmo a fazer essas especulações (se os filhos de Adão seriam ou não justos, se seriam confirmados em graça, o que aconteceria se só Eva tivesse pecado, etc.), portanto, eu penso que Deus assinalaria um outro fim ao estado de merecer e desmerecer, que não fosse a morte propriamente.

O fim do estado de merecer e desmerecer, em caso de Adão não ter pecado, poderia ser o momento em que a Terra estivesse densamente povoada, como cumprimento da ordem "Crescei e multiplicai-vos" (levando em conta que os filhos de Adão e Eva que pecassem morreriam)

A imortalidade de Adão e de toda a raça humana, caso Adão não tivesse pecado, está definida pelo Arausicano e pelo Tridentino. Eu não admito como possível uma solução, concebida pelos teólogos modernos, de que apenas não teriam um morte dolorosa, pois é totalmente contraditório com o ensino claro desses concílios.

Eu creio que Santos Henoc e Elias estão confirmados em graça, logo, sem a possibilidade ao menos do demérito. Contudo, a morte não assinala necessariamente o fim do estado de merecimento e desmerecimento, do contrário, a tese dos que sustentam que a Virgem nunca passou, nem passará pela morte, seria absurda.

Também não vejo necessidade de que Deus arrebatasse os primeiros pais, posto que já viviam no Paraíso terrestre, não contaminado pelo pecado, como a terra em que viviam Santos Henoc e Elias e que nós habitamos.

O cânon acima do XVI Concílio de Cartago, aprovado pelo Papa Zósimo. Na edição do Denzinger-Hünermann em português está:

Cân. 1. Foi decidido por todos os bispos ... reunidos no santo Sínodo da Igreja de Cartago: Quem disser que Adão, o primeiro homem <foi> criado mortal, de modo que, pecasse ou não pecasse, teria corporalmente morrido, isto é, teria deixado o corpo não por causa do pecado, mas por necessidade natural, seja anátema.

Impressionantemente, é exatamente isto que alguns teólogos modernos defendem.

A visão beatífica é o fim último do homem, mas isso não significa a tese de alguns teólogos como Henri de Lubac e Blondel de que esse fim último é intrinsecamente ligado à natureza humana. Em tese, é possível a criação do homem em estado de natureza pura e a felicidade natural.

Já a visão de Deus é impossível de ser relatada com palavras ou imagens, tanto que os místicos que chegam a ter a experiência do rapto, são abstraídos totalmente dos sentidos.

O céu é apenas o lugar puro e santo onde estão os bem-aventurados, mas o Paraíso terrestre também era santo porque Deus estava lá, e a visão beatífica é possível em ambos, pois é imanente ao bem-aventurado.

A imortalidade do homem não era natural. Além disso, como Sto. Tomás entendia, não era uma imortalidade totalmente intrínseca ao corpo humano. Segundo eu entendi de Sto. Tomás, havia vários dispositivos que impediam a morte natural do homem, fosse esta causada por elementos internos ou externos.

Havia uma força sobrenatural impressa na alma, que impedia a corrupção do corpo enquanto aquela estivesse unida a Deus (S. Th., Ia, q.97, a.1). O que me parece ser: impedia agentes intrínsecos ao próprio corpo de dissolverem-no.

Havia a reta razão, que atuava ditando ao homem o que lhe era prejudicial, e a Providência divina, que o defendia de qualquer imprevisto que lhe pudesse sobrevir. Ambas preservavam o corpo do homem de toda lesão que algo duro pudesse produzir-lhe (a. 2).

Havia a árvore da vida cujo fruto robustecia o vigor da espécie, no entender de Sto. Tomás, contra o desgaste produzido pela mescla de elementos estranhos (a.4).

De qualquer forma que se entenda isso com base no conhecimento científico atual, é certo que Sto. Tomás e os Padres anteriores a ele entendiam perfeitamente que o corpo do homem é um vaso frágil, sujeito a agentes externos e internos que podem corrompê-lo, e que a imortalidade dada a Adão não podia ser contrária à frágil condição do corpo — pois também é conveniente à nossa natureza que tenhamos um corpo mole e passível —, mas estar além dela e apesar dela.

Já na ressurreição, o corpo terá qualidades que o corpo de Adão não possuía, pois não servirá aos mesmos propósitos da vida hodierna.
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PARA CITAR ESTE ARTIGO:
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Imortalidade de Adão antes da queda questionada

Rui Ribeiro Machado 04/2015 Tradição em Foco com Roma.

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