Eu fico imaginando o que diriam os tradicionalistas se não fosse o Papa Pio IX (entre outras Singulari Quidem), mas o Papa João Paulo II que através do Magistério Ordinário iniciasse a menção da possibilidade da salvação fora da estrutura da Igreja Católica, quando há ignorância invencível. Ouviríamos frases similares a estas: “É heresia, fruto do modernismo!”; “O IV Concílio de Latrão deixa bem claro que ninguém se salva fora da Igreja Católica!”; “Eu não vou me submeter, isso é contrário ao dogma!”.
Tal é o que acontece no caso da famosa expressão latina “subsistit in” que foi enunciada pelo Concílio Vaticano II nesses termos: “Esta é a única Igreja de Cristo, que no Credo confessamos ser una, santa, católica e apostólica; depois da ressurreição, o nosso Salvador entregou-a a Pedro para que a apascentasse (Jo. 21,17), confiando também a ele e aos demais Apóstolos a sua difusão e governo (cfr. Mt. 28,18 ss.), e erigindo-a para sempre em «coluna e fundamento da verdade» (I Tim. 3,5). Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele ...”. (Lumen Gentium, nº 8) Segundo os acusadores esta expressão é contrária à verdade de que aIgreja de Cristo é (est) a Igreja Católica. Dizem mais, modernistas e tradicionalistas, a interpretam no sentido de que a intenção é dizer que a Igreja de Cristo subsiste simultaneamente em outras comunidades cristãs ou não. O teólogo modernista Leonardo Boff no seu livro “Igreja, carisma e Poder” afirma: “O Concílio Vaticano II, ultrapassando uma ambigüidade teológica das eclesiologias anteriores que tendiam a identificar pura e simplesmente a Igreja de Cristo como a Igreja católica romana, ensina com razão: “Esta Igreja (de Cristo), constituída e organizada no mundo como uma sociedade, subsiste na Igreja católica (subsistit in: toma sua forma concreta na Igreja católica).” Evita-se, assim, repetir o que afirmaram os documentos anteriores: ela é a Igreja de Cristo”. (pg. 138)
É tão contrária a verdade esta interpretação que bastaria ler a frase precedente que afirma com todas as letras que a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo,“Esta é a única Igreja de Cristo...”. É óbvio que os Padres conciliares não quiseram negar a primeira realidade que eles mesmos explicitaram, mas chamaratenção a outra. Ainda sendo a Igreja Católica a única Igreja de Cristo elementos de santificação e da verdade vindo dessa mesma Igreja Católica existem em outras comunidades não católicas, é uma presença que só se dá pela operação do Espírito Santo. Por exemplo, o batismo, veneração à Virgem, a crença em Jesus Cristo, a Sagrada Escritura, a própria caridade, etc. Todos os exemplos dados só poderiam ter valor caso proviessem da própria Igreja Católica. Assim sendo, todos aqueles que podem se salvar fora materialmente da Igreja seriam salvos por razão dela mesma (os que estão em ignorância invencível, é claro), pois Jesus a fundou como instrumento de salvação. É por isso que o documento Lumen Gentium acrescenta: “(...) muitos elementos desantificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica.” Isso é bem diferente do que dizer que essas comunidades enquanto tais sejam caminhos de salvação, o que sempre foi negado pelo Magistério pós-conciliar (Cf. Congregação para Doutrina da Fé, Notificação em 24 de janeiro de 2001) O próprio Doutor Santo Tomás já dizia: “Porque não importa por quem quer que seja a verdade conhecida, é tudo por causa de sua participação naquela luz que esplandece nas trevas, porque toda a verdade, independentemente de quem fala é do Espírito Santo.” (Super Evangelium Johannil, lectio 3)
A palavra “subsistit” deriva da filosofia antiga. Ela corresponde à palavra grega “hypostasis”, que na cristologia foi amplamente usada para explicar o dogma das duas naturezas, humana e divina, na pessoa de Cristo. Significou então que uma pessoa subsiste em duas naturezas. Por isso que o Concílio de Calcedônia (451) declarou que as duas naturezas estão unidas em uma subsistência.
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Para ficar mais claro façamos a relação:
1. As duas naturezas subsistem na pessoa de Cristo.
2. A Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica.
No primeiro caso não se quis dizer que a pessoa de Cristo não é as duas naturezas unidas e nem o segundo queria dizer que a Igreja de Cristo não é a Igreja Católica.
Isso vale para o dogma trinitário, Deus subsiste em três pessoas. Por que então não poder aplicar esta palavra à Igreja que é "mysterium trinitatis" no mundo? A palavra é (est),na verdade, é muito mais ampla, “subsistit” é que é uma maneira precisa de ser, isto é, ser como um sujeito que existe em si mesmo.
O Magistério post-conciliar já deu várias vezes à legítima interpretação sobre o uso dessa expressão para se referir à constituição da Igreja, no entanto, é completamente ignorada pelos os que a desvirtuam. Vejamos alguns exemplos:
O Papa João Paulo II na Declaração Dominus Iesus diz:
“Com a expressão ‘subsistit in’, o Concílio Vaticano II quis harmonizar duasafirmações doutrinais: por um lado, a de que a Igreja de Cristo, não obstante as divisões dos cristãos, continua a existir (subsistir) plenamente só na Igreja Católica e, por outro lado, a de que ‘existem numerosos elementos de santificação e de verdade fora da sua composição’, isto é, nas Igrejas e comunidades eclesiais que ainda não vivem em plena comunhão com a Igreja Católica. Acerca destas, porém, deve afirmar-se que ‘o seu valor deriva da mesma plenitude da graça e da verdade que foi confiada à Igreja Católica’. É, portanto, contrária ao significado autêntico do texto do Concílio a interpretação que leva adeduzir da fórmula ‘subsistit in’ a tese, segundo a qual, a única Igreja de Cristo poderia também subsistir em Igrejas e Comunidades eclesiais não católicas. Existe portanto uma única Igreja de Cristo, que subsiste na Igreja Católica, governada pelo Sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele”(n. 16 e 17, de 6 de agosto de 2000)
A Congregação para Doutrina da Fé, quando Ratzinger era ainda Prefeito, sobre olivro “Igreja, carisma e poder” do já citado Leonardo Boff diz:
“Para justificar esta concepção relativizante da Igreja — que se encontra na base das críticas radicaisdirigidas contra a estrutura hierárquica da Igreja católica — L. Boff apelapara a Constituição Lumen gentium (n. 8) do Concílio Vaticano II. Da famosaexpressão do Concílio « Haec Ecclesia (se. única Christi Ecclesia) ...subsistit in Ecclesia catholica », ele extrai uma tese exatamente contrária àsignificação autêntica do texto conciliar, quando afirma: de fato, « esta (istoé, a única Igreja de Cristo) pode subsistir também em outras Igrejas cristãs »(p. 125). O Concílio tinha, porém, escolhido a palavra « subsistit » exatamentepara esclarecer que há uma única « subsistência » da verdadeira Igreja,enquanto fora de sua estrutura visível existem somente « elementa Ecclesiae »,que — por serem elementos da mesma Igreja — tendem e conduzem em direção àIgreja católica (LG 8). O Decreto sobre o ecumenismo exprime a mesma doutrina(UR3-4), que foi novamente reafirmada pela Declaração Mysterium Ecclesiae, n. 1(AAS LXV [1973], pp. 396-398).” A subversão do significado do texto conciliar sobre a subsistência da Igreja estána base do relativismo eclesilógico de L. Boff, supra delineado, no qual sedesenvolve e se explicita um profundo desentendimento daquilo que a fé católica professa a respeito da Igreja de Deus no mundo.” (Notificação sobre o livro Igreja, Carisma e Poder’ do Pe. Leonardo Boff, o.f.m, de 11 de Março de 1985.)
A Congregação para Doutrina da Fé, já sob a prefeitura do cardeal William Joseph Levada responde algumas questões sobre adoutrina quanto a isso:
Segunda questão: Como deve entender-sea afirmação de que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica?
Resposta: Cristo “constituiu sobre a terra” uma única Igreja e instituiu-a como “grupo visível e comunidade espiritual”, que desde a sua origem e nocurso da história sempre existe e existirá, e na qual só permaneceram epermanecerão todos os elementos por Ele instituídos. “Esta é a única Igreja de Cristo, que no Símbolo professamos como sendo una, santa, católica e apostólica […]. Esta Igreja, como sociedade constituída e organizada neste mundo, subsiste na Igreja Católica, governada pelo Sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele”.
Na Constituição dogmática Lumen gentium 8, subsistência é esta perene continuidade histórica e a permanência de todos os elementos instituídos por Cristo na Igreja católica [8], na qual concretamente se encontra a Igreja de Cristo sobreesta terra. Enquanto, segundo a doutrina católica, é correcto afirmar que, nas Igrejas e nas comunidades eclesiais ainda não em plena comunhão com a Igrejacatólica, a Igreja de Cristo é presente e operante através dos elementos de santificação e de verdade nelas existentes, já a palavra “subsiste” só pode ser atribuída exclusivamente à única Igreja católica, uma vez que precisamente se refere à nota da unidade professada nos símbolos da fé (Creio…na Igreja “una”), subsistindo esta Igreja “una” na Igreja católica.
Terceira questão: Porque se usa aexpressão “subsiste na”, e não simplesmente a forma verbal “é”?
Resposta: O uso desta expressão, que indica a plena identidade da Igreja de Cristo com aIgreja católica, não altera a doutrina sobre Igreja; encontra, todavia, a sua razão de verdade no facto de exprimir mais claramente como, fora do seu corpo,se encontram “diversos elementos de santificação e de verdade”, “que, sendo dons próprios da Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica”.
“Por isso, as próprias Igrejas e Comunidades separadas, embora pensemos que têm faltas, não se pode dizer que não tenham peso ou sejam vazias de significado no mistério da salvação, já que o Espírito não se recusa a servir-se delas como de instrumentos de salvação, cujo valor deriva da mesma plenitude da graça e daverdade que foi confiada à Igreja católica.” (Respostas a questões relativas a alguns aspectos da Doutrina sobre a Igreja, de 29 de Junho de 2007)
Diante de todos esses documentos explicativos não haveria mais o que discutir se a obstinação não interferisse. Continuam dizendo que os textos como tais não seriam a verdadeira expressão do concílio, desconsiderando assim qualquer harmonização entre os ensinamentos de outrora e conciliar. Bem, como disse oentão Cardeal Ratzinger, “ao menos reconhecem que somos fiéis à letra”.
Pio IX: “Como todos os fautores de heresia e de cisma, eles se gloriam falsamente de ter conservado a antiga fé católica, mas eles subvertem ofundamento mesmo da fé e da doutrina católica. Reconhecem na Escritura e naTradição a fonte da Revelação divina; mas se recusam de escutar o Magistério sempre vivo da Igreja..." (Inter gravíssimas 28/10/1970)